SOBRE NEGROS ARQUÉTIPOS E SOMBRAS

Estou aqui no aeroporto de Fortaleza. Satisfeito, alma renovada. "Limpeza espiritual terminal" concluída. Sim, porque depois de um feriado prolongado em Salvador e uma semana nas praias do Ceará, não tem catiça ou urucubaca que não se dissolva. Nem precisei acender velas ou levantar preces; a simples razão de estar é limpeza por si só. Fica hoje uma tristezazinha, uma saudadinha desse tempo que acabou de acabar, de acordar com o Sol nascendo, de ver o pôr-do-sol, de tomar água de coco e banho de mar todos os dias. Fiquei com muita vontade de colocar uma peruca, um nariz de palhaço, me fingir de idiota e analfabeto e me tornar deputado estadual no Ceará. Porque assim ia poder trabalhar pouco, ganhar muito e morar na praia. E ainda me devolvia ao Ceará um Tiririca melhorado.
Esses dias sem ter que pensar em nada às vezes me perturbam; tenho uma insana dificuldade em deixar a mente aquietar. Basta eu esvaziá-la, lá vem um ímpeto de torná-la repleta de outras coisas, bobagens ou não. E aproveitei sem querer para reparar nas pessoas e suas relações com a vida e com o poder.
Faz tempo que tenho acompanhado a transformação de algumas pessoas na sua relação com o poder. Passaram por mim nesses anos todos, alguns jovens de coração puro e que, como aquela sombra que chega encobrindo o sol e claridade nos filmes de terror, foram escondendo ou perdendo a pureza. Não estou falando de perder a ingenuidade; porque ela deve partir com o amadurecimento; falo da pureza, do coração limpo. Infelizmente ainda vou poder observar muitas dessas sagas, porque o meio médico e, mais ainda, o meio acadêmico, são lugares propícios à sujação da alma. A alma é algo muito delicado que vira lama com apenas um movimento.
Mas não foram só os jovens que vi passar. Vi adultos e velhos infelizes, prisioneiros de horríveis armaduras aristocráticas, muito provavelmente porque seguiram, desde jovens, a mesma jornada que descrevi anteriormente. Acho que o poder, além de sujar e escurecer a alma, envelhece e entristece.
Infelizmente a obsessão pelo poder não está só na Academia. Um lixeiro condecorado como chefe dos lixeiros pode se obnubilar com o poder e se tornar um tirano. E fiquei reparando nos tiranos que existem por aí a aprisionar almas com sua fama, seu dinheiro, seu poder.
E de onde será que isso vem? Será que algumas pessoas nascem com o gérmen da tirania e da gana pelo poder, esperando para serem estimuladas ou libertas, como o espectro de Zanoni ou é um mal que se aproxima e vai contaminando lentamente, como ondas radioativas? É possível que aquela pureza que enxergamos seja uma capa, uma cápsula que irá eclodir em algum momento?
Os ébrios de poder muitas vezes mudam até as vestimentas: o jeans e as camisetas dão lugar para ternos, gravatas e sapatos cuidadosamente engraxados. Infelizmente o poder não acopla bom gosto; muitas vezes é possível desvendar barracos ocultos sob palacetes.
Há alguns anos conheci uma pessoa da qual me tornei amigo. Quando o conheci, ele estava num processo difícil de transição na vida e me parecia uma pessoa bem normal. À medida que o tempo foi passando, ele foi resolvendo suas finanças e se assentando em bons empregos, de tal modo que cobriu-se de louros, passou a contar vantagens e menosprezar as pessoas nas conversas mais banais. Comecei irremediavelmente a tomar asco dele, mas sentia uma certa culpa, me julgava intolerante e tentei, por mais algum tempo, arrastar aquele protótipo mal sucedido de amizade. Vivia em minha casa, enquanto eu não havia sido convidado nenhuma única vez para a dele. E acabei percebendo que aquilo não era amizade, era conveniência; dessas que só se fazia em ocasiões em que ele necessitasse.
Eu cheguei a me perguntar o motivo de querer escrever sobre sombras e pântanos, com tanto sol e alegria me rodeando. Infelizmente não controlo e deliberadamente não desejo mais controlar o meu pensar. E essas coisas escuras, sombrias, deixo-as, como a tristeza, se achegarem, colocarem suas pesadas mãos em meus ombros e escurecer minhas letras. Mas é lógico que elas não me visitam sem motivo.
Como disse, fui visitado por situaçōes e pessoas que espelharam egoísmo, ganância, autoritarismo e perversidade. Dessas visitas que chegam sem avisar, sentam-se à nossa mesa, comem da nossa comida e vão embora deixando negras prendas, como quem emporcalhasse aquele lavabo sem janelas.
Mas tudo que nos chega deve ser sempre bem vindo, porque às vezes são formas esquisitas de mostrar os ensinamentos da vida ou são os panos sujos e fedidos usados para limpar a alma. Não tem como livrar-se do lixo sem ver o lixo; não há como lavar o quintal sem ver a água suja escorrer pelo caminho.
Definitivamente não quero o poder. Quero apenas poder. Poder fazer as coisas que sonho e desejo; poder me sentir mais e mais realizado e, cada vez mais, poder ficar longe desses pântanos escuros de pessoas infelizes.
2 Comments:
Vai ver que essa coisa de poder e' uma questao de sobrevivencia mesmo. Os mineiros no Chile tiveram um lider que segurou a barra mas que deve ter sido bem mandão.
O poder pode ser fascinante, claro. E chega uma hora em que parte das tuas decisoes, por mais humano que voce queira ser com todos, acaba afetando alguem na base da piramide.
Voce que e' profissional da saude sabe que nao basta querer "poder" somente mas e' preciso ter um pouco de ambição.
Eu sou ambicioso, no sentido de desejar crescer, ter mais, conquistar coisas que viabilizem meus sonhos. E líderes são necessários para organizar grupos de todos os tamanhos.
Mas o poder pelo poder, sonhar com o poder sem propósito ou, pior, com propósitos ditatoriais cada vez mais me enoja. Isso escurece as pessoas.
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