ACERTO DE CONTOS
Era uma vez um escritor. Como a maioria dos escritores, ele começou cedo. Desde criança compunha versinhos, histórias, poesias. À medida que a vida foi ficando amarga, escreveu poesias de igual teor, como se destilasse, através das letras, os venenos da existência. Denunciou em letras garrafais suas revoltas, relatou em códigos as violências que sofria, mas guardava para si, ninguém lia. Chegou a jogar um montão de coisa fora, porque em algum momento achou que tudo o que escrevia era ruim. Chegou a pensar em jogar fora tudo o que havia escrito, enlevado pela mesma insanidade de desvalor. Não se sabe dizer se foi a sua psicóloga que salvou seu instinto, elogiando seus escritos, ou se seu instinto já estava salvo quando resolveu mostrá-los a ela, mas o fato é que seu furor scribendi tomou um corpo, uma viço, um vigor. Nunca mais deixou de escrever. Nunca mais jogou nada fora. E passou a divulgar, através das ondas cibernéticas, seus escritos. Embriagado de letras, continuou vomitando palavras que traduzissem seus diversos e inconstantes estados de alma. Sim, sua alma era inconstante, como as almas dos artistas.
Num certo pedaço dessa estrada, resolveu publicar seu primeiro livro. Um sucesso. Sucesso para a própria alma. Para ele, publicar um livro, com papel, desenho, foto, páginas, índices e orelhas valia muito mais do que milhares de visitas cibernéticas aos seus escritos. É como a mulher que sabe que está grávida e fica feliz, mas só se realiza completamente com o nascimento. Sentiu-se um pouco oco após o livro. Blues puerperal de publicação. Sentiu-se incapaz de cuidar, por um momento, dos seus próprios escritos. Que bom que não durou para sempre.
Nunca foi muito sortudo nos concursos. Havia participado de alguns, sem bons resultados. Recentemente soube de um último. E foi arrebatado pelo sonho de conquista. Fez propagandas, pediu apoio de amigos, fez campanha. Ficou tenso. Fez promessas. Fez contagens na unha para saber de sua posição no concurso. Lutou, divulgou, pediu mais apoio. Subiu de postos. Mas começou a ficar cabreiro com os escores dos concorrentes. Enquanto tinha 100 votos, outros tinham mil, dez mil, cinco mil. Nas baixas, lamentou não ter um milhão de amigos. Passou a ler alguns contos dos concorrentes. Ficou perplexo. Dos que leu, não viu nada que merecesse mil votos. Quiçá dez mil. Erros de português. Histórias chulas. Ao mesmo tempo leu contos belíssimos com nenhum voto. Tudo bem, ele não tinha um milhão de amigos, mas não ter amigo nenhum? Nem dar votos a si mesmo? Achou estranho pessoas que entraram na votação depois dele e, dias depois, alcançavam as cifras mágicas. Descobriu que era possível roubar nas votações. Titubeou na tentação de roubar também. Mas decidiu lutar com votos verdadeiros, insistentes, incessantes, no máximo dos máximos votos possíveis.
Finalizada a votação, legitimamente brasileira, como aquelas votações que ocorrem na Assembléia Legislativa e no Senado, nas escolas de samba e nos partidos políticos, ganham – ao menos a maioria – aqueles que instalaram seu roubadores eletrônicos de votos e alguns poucos legítimos que concorreram com a mesma raça que o escritor. É lógico que ficou despeitado. Queria ganhar seu ipad, seu vale compras numa loja de roupas femininas para dar de presente à sua irmã e, principalmente, ter seu conto publicado. Derrota é derrota. Mas dessa saga toda, sobrou uma coisa que não é sobra. Exaltou-se, resplandeceu, brilhou, cresceu. Apareceu o girassol das amizades, das pessoas que leram seu conto e votaram, e elogiaram, e descobriram o escritor escondido numa rede social cibernética; das pessoas que batalharam com ele, votando, fazendo crescer os escores e torcendo honestamente por ele. Pois o que é o escritor, senão um mostrador de coisas para o mundo? Um transdutor das imagens, histórias, passagens, paragens da vida em letras. Por mais que guarde, esconda, se intimide, é para o mundo que o escritor escreve. E o sonho é sempre o mesmo: sedimentar tinta num papel que eternizará sua criação.
E assim o escritor vai seguindo. Correndo atrás de ventos que o carreguem a dimensões maiores; fabricando ventos se eles não aparecem espontaneamente. Pegando carona em ventos alheios, sempre em busca do Sol. E os amigos, os leitores, os curiosos são raios desse Sol brilhando no céu e na vida do escritor.
Obrigado, amigos.
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