Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Thursday, April 26, 2012

PARA ALÉM DAS PRECES, O AMOR


Que eu sou macumbeiro, quase todo mundo já sabe. Quem não sabia, que fique sabendo. Tem gente que não gosta da palavra; eu amo. Os não macumbeiros não gostam porque lembram de macumba, como uma sinonímia de praticar o mal, matar frangos na encruzilhada e sacrificar criancinhas. Os macumbeiros não gostam de serem assim chamados porque macumba é o nome de um instrumento de percussão africano, sendo macumbeiro, portanto, o tocador do mesmo. Eu, como umbandista e estudioso dos cultos afro-brasileiros, amo ser reconhecido, identificado e chamado de macumbeiro. É a forma que encontrei para desmistificar a minha religião e aproximar as pessoas de uma compreensão mais ampla dos seus significados. É lógico que vivemos tempos diferentes. Nosso Estado é pseudo-laico, mas as pessoas não são mais presas por serem macumbeiras e, apesar da crescente intolerância nos dias de hoje, ainda há espaço e liberdade para professarmos nossas religiões, seitas e cultos. Mas é sendo um bom macumbeiro que eu vou seguindo. E pelo caminho, vou encontrando gente que vai saindo dos arbustos do preconceito, revelando sua fé, suas crenças. A cada dia, amigos, pacientes, conhecidos, vão tomando coragem e saindo do “armário espiritual”, dando-se o direito de serem o que bem entendem, umbandistas, candomblecistas, macumbeiros, budistas, hindus. Sem a necessidade de se esconderem atrás de rótulos socialmente aceitos, tais como “católicos” ou “espíritas”. E quando somos livres, somos capazes de mostrar a cara, de conversar a respeito, trocar idéias, discutir pontos de vista. Tenho amigos católicos, evangélicos, kardecistas, judeus, esotéricos, budistas, ateus, muçulmanos e de um outro tanto de religiões, credos, cultos, crenças. Quer saber? Não faz diferença. Outro dia estava no meu consultório, conversando com uma amiga evangélica, explicando minha crença, meus pontos de vista. Ela soube ouvir e respeitar. Agora, se não for verdade, se ela me vê como um apóstata, fariseu ou demônio, soube ao menos respeitar a minha posição. Mas o mais legal de tudo isso é poder oferecer “presentes de fé” aos amigos. Eu não sou um poço de bondade; não quero disputar vagas no céu com Gandhi ou Irmã Dulce. Mas fico feliz ao poder oferecer orações, confortar corações aflitos de pessoas que gosto. Um tempo atrás, um amigo passou por problemas sérios de saúde em sua família. Do hospital, respondeu emocionado minha mensagem pelo celular, agradecendo por eu ter rezado por ele. Graças a Deus, ele melhorou e está bem agora. Recentemente, ele veio até mim e disse: “Estou precisando das suas orações. Sei lá, pra vida melhorar, pra que venham boas vibrações”. Ele não estava pedindo a resolução num momento de desespero; esse pedido era diferente; ele estava em busca de algo novo, de uma revelação. Guias, patuás, nomes no papel, velas, missas, correntes, novenas. Sinais concretos da devoção, da fé e principalmente do amor. O amor a Deus, às divindades, à religião; mas também o amor àqueles que ofertamos tais presentes. Essa semana recebi um presente de uma pessoa que troquei pouco mais de uma dúzia de palavras. Num saquinho de presente, uma pequena guia azul e um arco e flecha, símbolos de um orixá; uma lembrança de uma comemoração em seu terreiro. Mais que um presente: um gesto de carinho. E tenho certeza de que a energia que esse presente contém tão grande quanto o amor com o qual ele foi dado. Nesse caminho também tenho encontrado pessoas que me ajudam e que tenho ajudado, compartilhando experiências, livros, lugares e conhecimentos espirituais. O mundo é assim: um sistema de trocas. Trocas que não precisam envolver dinheiro ou bens materiais. Trocamos votos, desejos, sentimentos, preces. Trocamos energias. E eu quero poder estar sempre apto, sempre pronto, sempre desperto a desfrutar essas riquezas que fazem tão bem ao coração. 

Friday, April 20, 2012

ANDANÇAS


Já faz algum tempo que comecei um pequeno consultório no bairro onde nasci. Da primeira vez que passei pela avenida principal do bairro, tive uma sensação estranha. Fazia uns quinze anos que não passava por lá. Nasci e cresci naquele bairro. Vi a padaria onde eu pedia bisnagas sentado no balcão; a relojoaria onde comprei meu primeiro relógio; a casa onde morei, onde levei uma surra do meu pai; a rua em que brincava e onde conheci grandes amigas. Tudo, tudo, ao passar por esse bairro, por essas ruas, tem um cheiro, um cor, um tom, traz uma lembrança. Tenho histórias para contar até da casa onde fica a sala que se transformou em meu novo consultório: eu conhecia a dona; uma gorda com as bochechas rosadas, seu marido com cara de banana e a filha com cara de sonsa; vendiam roupas pagas em muitas vezes, abatendo valores de uma “carterinha”, como quando abrimos contas em quitandas do bairro. 

Num dos meus primeiros atendimentos no bairro, dei de cara com uma mulher cuja cara não me era estranha. Perguntei onde ela morava. Ela explicou. “Pra cima ou pra baixo da igreja?”, perguntei. “Pra cima. A igreja dos crentes?”, perguntou. “Sim, essa mesmo”, respondi. “Detesto aquela gente”, argüiu com raiva. Abaixei o olhar. “Você conhece essa gente?”, ela perguntou. “Sim, são meus parentes. Mas não tenho muito contato.” Preferi avisar. Achei melhor do que ela descobrir depois, lendo meu sobrenome na receita. Paciência. Ela nunca mais voltou.

Hoje, esperando o horário para começar a ver meus pacientes, parei para fazer um lanche na padaria. Ao sair, passo em frente à banca de jornal e vejo um cara com um semblante conhecido. “Nossa, é a cara do...”

“Fulano!”- um cara ao lado gritou o nome dele.
Ele mesmo. O menino que sofria bullying na escola primária e que foi abusado sexualmente por dois moleques maiores no ônibus escolar. Essa história foi o vexame do ano na escola. Eu, criança, assisti àquela cena sem nem saber o que significava, tampouco entendendo que eu teria sido o próximo, não fosse alguém ter denunciado o ocorrido à direção da escola e os meninos serem tirados da condução escolar. Lembro dos seus nomes, dos seus rostos, das casas onde moravam. Por um momento quase me aproximei dele, para me apresentar. Uma insalubridade. Qual seria o sentido de aparecer diante dele, mais de trinta anos depois? Como eu me apresentaria? Oi, eu era aquele gordinho que viu você ser violentado quando criança?

Saí de lá, entrei no carro. Lembrei da violência ao qual era submetido, por ser “delicado”, por ser gordo, por não ser esportista. Gordo, viado, “gentinha”. Lembro do medo que eu sentia ao ter que pedir permissão à professora para ir ao banheiro, com o risco de receber uma negativa. Nesse tempo, como em tantos outros, minhas histórias fantasiosas, meu mundo paralelo eram minhas maiores armas para conseguir acreditar que a vida não era tão ruim.

“Bulinizados”, eu e ele. Sobreviventes. Não sei como ele vive, não sei o que ele passou nos anos que se passaram. Só posso dizer o que eu vivi. Mas ele e eu estamos aqui, vivos, mais de trinta anos depois. Cresci, fiz terapia, libertei-me da maléfica influência do meu pai, fugi do bairro. Esse bairro, que ficou tantos anos trancados num arquivo empoeirado das minhas memórias, hoje é um caminho por onde passo ao menos uma vez por semana. E passando por esse caminho, cuidando de pessoas, reaproximando-me de pessoas queridas – primos e primas, amigos e amigas – não estou apenas cobrindo com novas cores os muros sombrios dessa escola esquecida; estou quebrando azulejos, trocando rejuntes, fortalecendo paredes, tijolos, reboques simbólicos desse monte de coisa que me construiu, me modelou e faz parte do que sou hoje. 

Friday, April 06, 2012

A MENINA FRÁGIL E A MOTOQUEIRA INTRÉPIDA

Andava pela rua na ensolarada tarde paulistana e me deparei com uma cena bizarra. Comum, mas bizarra: um moço na casa dos vinte e poucos anos “gritando baixinho” com uma menina, mais ou menos da mesma idade. Prováveis estudantes universitários, talvez alunos de um dos cursos de medicina mais concorridos do país. Ele, autoritário, peito estufado, deitando impropérios. Ela, cara de choro, de vítima, perdida, tipo cachorro sarnento. Não tive pena dela. Tive raiva. Raiva de ver cenas como essa, pelas ruas, nos dias de hoje. Detesto ver gente discutindo em público, principalmente quando o motivo da discussão é a vida privada, relacionamento. Raiva por imaginar o que será desse casal no futuro ou o que será dessas duas pessoas no futuro, se eles não se tornarem um casal. Será que ele baterá nela? Será que ela viverá, assim, sempre submissa, ostentando olhos roxos e dizendo que bateu a cara na maçaneta? Ou será que ele já bate nela? Será que ela um dia se libertará e dará uma sapatada na cabeça dele? Será que ela vai adquirir sífilis porque transou sem camisinha com ele e ele, que comeu várias outras, também sem camisinha, infectou-a? Tudo isso passou pela minha cabeça em reles segundos. Fui ao banco, fiz meus depósitos. Saí do banco, eles ainda estavam lá. Na esquina, na mesma posição.

Uma quadra adiante, parados no farol,vejo um “casal circunstancial”: um motoboy e uma motoqueira. Ele, com sua mochila, seu capacete, sua jaqueta California Racing, maneiras grosseiras. Ela, com sua scooter, seu capacete cor-de-rosa, pedindo informações a ele. Ele, cortez, conduziu-a até o endereço desejado. Saiu em disparada, assim que o sinal abriu. Ela saiu logo atrás, postura valente, jeito independente. E cada vez mais vejo mulheres assim: conversando de igual para igual com os homens, indo à luta, montadas em carros, bicicletas, motos ou vagões de metrô. Tenho orgulho delas. E também tenho orgulhos “deles”, que cuidam, que orientam, que ajudam, que compartilham.

Essas histórias, ambas observadas numa mesma tarde, são apenas uma fotografia. Pode ser que nada do que imaginei estivesse acontecendo com aquele casal. Pode ser que ele estivesse “p” da vida porque descobriu que ela o traiu ou que abortou um filho seu. Idem para o casal de motoqueiros. Pode ser que ele tenha se oferecido para guiá-la porque era um estuprador e queria aproveitar a chance de esfolar mais uma vítima. Pode ser, pode não ser. Quem vai saber? Exceto se esses casais se tornarem páginas de noticiário policial, ninguém vai saber.

Mas fiquei com vontade de ver o mundo mudando. Fechei meus olhos e imaginei um mundo onde as pessoas não violentadas, não são agredidas. Imaginei o quanto tempo as pessoas perdem brigando, xingando, humilhando e sendo humilhados. O ser humano é tóxico.

Mesmo que haja motivo para discutir, e muitas vezes há, que não seja no meio da rua, que não seja ofendendo ou sobrepujando o outro; somos (em tese) seres capazes de raciocinar, de compreender e até perdoar. Eu não acredito no perdão polido, não acredito em gente que perdoa tudo, que não sente raiva ou inveja nunca. Perdoar toma tempo, um tempo individual, particular, íntimo. Perdoar é deixar partir as pedras pesadas que carregamos, tornando-nos mais leves.

Tive vontade de dar uma sapatada na cabeça do moço estúpido e dar um chacoalhão pelos braços na menina sonsa. Será que adiantaria? Provavelmente não. Gente sonsa precisa de tempo para se libertar dos grilhões; é como o perdão; não há como antecipar esse tempo, porque esse tempo também é dela. O que a tornou tão sonsa e submissa? Um pai violento, uma mãe omissa? Depressão, síndrome do pânico, anemia? Resta a curiosidade e a esperança de ver dias melhores.