Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Thursday, April 24, 2014

SOBRE ABISMOS, LABIRINTOS E LÁGRIMAS


Vez ou outra, a alma de alguma das mulheres da minha vida se apossa de mim. E pensa, fala, gesticula, escreve como ela, ou o que ela sente. Cada vez mais entendo, aceito e gosto de ser invadido por elas. É um jeito de amá-las e sê-las. 

Eu não sei o que acontece, mas vez ou outra acontece. É como se o chão se abrisse em fendas sanguinolentas transpirando o calor da terra e o céu se partisse em chuvas levemente salgadas como as chuvas que escorrem dos olhos e hidratam a boca seca de desejo. Adoro quando ocorre assim. Meu coração angustiado, um aperto omisso de causas minhas conscientes faz descarrilar uma bateria toda de bumbos, caixas e bongôs, num tum-tum-rá-tá-tum-toque-toque que chega a parecer que a morte está me desfiando pedaços, como uma carne-de-sol-sem-sol. Sim. Quando morrer de fato quero que a morte que venha me buscar seja uma daquelas bem cangaceiras nordestinas. E nesse desespero, de repente o anjo me toca o coração com sua unha afiada, pontuda como uma chave de fenda e faz girar o botão emperrado que não deixa a emoção vazar. Estou entupida. Travei. Faz anos que estou assim, parada de emoções e desejos, secretamente morta, passando mal, contorcendo-me de um desespero que é tudo e nada e coisa nenhuma, tudo ao mesmo tempo. E enquanto o anjo me finca seu dedo cristálico, girando as ruelas de meu coração como as de um cofre enferrujado, eis que me vou pouco a pouco desentupindo e novamente me tornando humana. Somos pessoas-casas cheias de defeitos e reparos a fazer. Agora estou com vazamento. Mas é um vazamento bom. À medida que o anjo girou a rosca, torceram-se acidentalmente as conexões enferrujadas do cano que liga minha dor ao cérebro e acho que é por isso que sentia esses entupimentos e não sabia com as letras mudas da consciência o que se passava comigo. Uma espécie de cegueira interna. Destravei. Agora estou com vazamento. Desses que juntam tanta água de soro caseiro que as letras da tristeza vão boiando pelo caminho das sinapses. E a cabeça vai ficando cheia de água, tanta água que aperta os giros, que chega a fazer doer. Tem gente que chama de enxaqueca. Eu chamo de enchente mesmo. Lá vem de novo o anjo com seu dedo pontudo. Precisa deixar vazar a água pelos escoadouros do ladrão. E ele mete o dedo no meio do meu astigmatismo, procurando um lugar, bem ali, por onde deixar a aguaceira toda escorrer. Achou uma cuia onde repousam os olhos. E de forma que esse anjo é muito ecológico, os olhos aproveitam para se banharem pela água que vaza. E como nenhuma outra parte do corpo mais, os olhos são capazes de enxergar o que nenhum outro órgão vê. E como é bonito ver descer a água do cérebro, banhando os olhos, deixando passar letrinha por letrinha da tristeza a descer pelas corredeiras da vida. Espetáculo maior ainda está por vir. É quando vaza o tal soro caseiro através da cuia dos olhos e as lágrimas vão saltando, uma a uma, num ballet de suicídio coletivo. O suicídio da tristeza. É como se cada gota que se suicidasse carregasse consigo a tristeza em pedaços. Tristeza moída, agora úmida e fofa, que nem farofa de pobre. E cada gotinha de tristeza aguada desce pelo corredor da face. Tem umas que morrem morridas mesmo. Têm outras que aportam nos lábios secos, umedecem uma existência até então seca e faz a boca querer dizer que ama alguém. Toda vez que vazo pelas canaletas da alma sinto vontade de dizer que amo. Amo meus amores, meus amigos, meus familiares – mas somente os que amo de fato. Agora que o soro caseiro hidratou minha alma não sinto mais angústia. Sinto um desespero inconteste de estar viva,de amar, de ser amada, de amor de todas as formas. Não estou mais oprimida. Sobrou um coração oco boiando nessa aguaceira toda. 


E então aparece o homem dos sonhos. Com capa de super-herói, sem medo de me levar para voar. E ele chega disposto a me levar para voar e me tira do chão. Nem pergunta se eu quero, porque ele e eu sabemos que eu quero. Eu sempre quis. Mas sempre não fui. E me fui toda embora com ele, sobrevoando telhados e desviando dos prédios espelhados modernos. Sou livre presa a ele. E sou presa quando ele me liberta, de forma que sou presa fácil sempre. E é de repente que ele resolve me libertar. Não avisa, não deixa recado, desaparece. Não sei se volta para me prender de novo nas asas da liberdade. Não sei se tem amor, mas sou tomada por um gesto dele que é como se fosse um gesto de amor. Pode não ser nada disso ou tudo isso ou tudo isso e nada disso misturados. O fato é que, voando em meio aos vazamentos, deixei escorrer demais o soro e com ele as letrinhas da tristeza. Não estou mais entupida. Agora me encontro seca. Dessas securas desidratosas dos amores que vão embora. O pior é que ele contaminou as minhas águas. Deixou o perfume, o cheiro de mágica e o cheiro de cheiro bom se misturarem com as águas da minha existência. E tudo evaporou tão rápido. Mas ficou o cheiro dele.

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