PROSA POÉTICA
Achei que não escreveria mais poesia. Mais
por incapacidade que por escolha. Achei que havia se esgotado o tempo, o ciclo,
o ritmo. Talvez porque ligasse poesia à dor e aos redemoinhos das minhas
palavras pensadas angustiadas e necessidades intermináveis de desabafos num
mundo particular sozinhamente habitado. Mas do mesmo jeito que a vida é feita
de sóis e de luas; do mesmo modo que tempestades e dias ensolarados, e nuvens
ou arcos-íris ocupam o mesmo céu em tempos distintos ou não; eis que ressurge
e urge e ruge esse tempo das dores da alma que só sangram poetizando e só
poetizando se estancam. É quando vem o vazio inominado ou a angústia indizível
que me possuem, que se aproveitam da minha mente, do meu corpo, das minhas
mãos; é quando a caneta escorrega pela mesa como musa em lençóis de cetim
vermelho ou minhas mãos bem escorregam até ela a deflorá-la. Tempo atemporal em
que minha mão e caneta ou suas teclas, substitutas contemporâneas se tornam uma
única coisa: torneira. Torneira de dores, pensamentos, ilusões, enchentes de
coisas pensadas, sofridas e doídas. Tormenta de tormentos tornados palavras;
tornado de decepções e digressões advindas da vasta e impecável memória que
clama ser esquecida. Se eu esqueço das comidas, dos compromissos, das coisas,
das contas, dos papéis, dos nomes e dos aparelhos, como sou incapaz de me
libertar das dores passadas e da monstruosa angústia? Taí. Impossível. E é
somente atravessando essa ponte de letras que construo alívio para essa
inquietante e lancinante dor de alma. Foi assim que sobrevivi à fome, às
guerras, às pestes-gentes. Foi assim que esvaziei armários da alma, jogando
caixas de dores e desafetos palavras afora. Foi assim que suportei anos a fio a
dor de estar preso numa vida-armário. Mas também foi assim que arrebentei as
portas presidiárias e saí para vida. Foi escrevendo. Foi compondo. Poetizando a
dor pude enxergá-la e exorcizá-la. Foi-se e volta-se. A vida, em seus
repetitivos e enfadonhos ciclos nos surpreende com surpresas pouco surpreendentes
que vez ou outra nos arrebatam. E então renasce o ímpeto poético como saem os
super-heróis de seus esconderijos e disfarces. A poesia que jorra, a poesia que
deságua, revela, desvela. Enxurrada de palavras impensadas, dispensadas,
repisadas. Vivas. O choro letrado de uma alma oprimida pelas torrentes
confusões da vida dos normais. Eu ainda não sou desse mundo. Quando serei? Isso
ela não me deu. Nem sei se quero. Não, de fato não quero ser um zumbi
normalóide e vazio de sentido. Prefiro essa alma inconstante, que sofre e que
sorri; que sangra e estanca, por vezes não estanca; que vaza, que escorre. Dor,
amor, desespero, angústia, alegria, gozo. Tudo. Vaza. Não seca.
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