TRANSGENERALIDADES...
Traveca, travecão, transsexual, travesti, Drag Queen, cross-dresser, transgênero. Outro dia estava pensando em como são corajosas essas pessoas que, por vontade, por necessidade ou seja lá por que for, cruzam essa ponte que leva a um outro lado, que pode ser desconhecido ou já muito conhecido e desejado. Acho que é preciso mais coragem para se travestir, se “montar”, mudar ou assumir um mudança exterior de sexo - que muitas vezes já é internalíssima - do que para assumir uma orientação sexual.
Claro, claro, cada qual com a sua cruz. E parecido com o que disse algum poeta que ouvi por aí (“cada um sonha seu sonho à sua maneira”), a dor de cada um pertence a cada um. E, desse modo, cada pessoa sofre seu quinhão para resolver seus problemas ou tomar suas decisões. Mas, realmente, tenho a sensação de que essa ponte é muito mais comprida do que muitas outras.
Sobre os transgêneros, na verdade não estou querendo falar deles. Quis apenas dar linha pra essa pipa, porque essa palavra, além da “cunha” que designa um grupo de pessoas (…), me fez pensar hoje sobre o “trans” em nossas vidas… Não quero falar do “trans” que tem estado tão em moda... o “transgênico”. Como todo bom comilão que sou, pouco me importa se é trans, não-trans, bio, ômega 3,4,5 ou 6... Morro de infarto, morro feliz com a boca cheia.
Decidi falar do “trans” como uma “troca”, um estado de transferência, de transitoriedade. Como disse uma amiga ao elaborarmos um plano diabólico-infantil – como os planos infalíveis do Cebolinha para derrotar a Mônica – uma pequena traquinagem de dois adultos-crianças: “adoro essas pequenas transgressões”.
Todas as pessoas, por mais rígidas que sejam, têm uma porção “trans” em seu interior. Recentemente viajei com um amigo que, apesar de manter sua vida sob códigos de conduta muito rígidos, não se fez de rogado ao dizer que não havia necessidade de comprar bilhete de metrô na pequena cidade do leste europeu, simplesmente porque “ninguém conferia”.
Um outro conhecido contou um dia que, para se vingar de um colega de trabalho, durante uma viagem de negócios, pendurou a placa de “favor arrumar o quarto” na porta da vítima, para que ele fosse acordado nas primeiras horas da manhã. E, como se não bastasse, ligou várias vezes de um orelhão público para o quarto do cara para acordá-lo durante a madrugada…
Tem gente que precisa se álcool ou outra droga pra liberar sua porção “trans”. Na vida “real”, cotidiana, trava tudo, esconde, guarda, prende, mocofa... Daí vem o álcool, a maconha, a cocaína e, com elas, vem todas as verdades,as feras, os demônios, os medos e as coragens... Tudo que não podia ou não devia ser dito, e por vezes tudo o que deveria para por fim a certos fantasmas ou atrocidades...
Além dos psicotrópicos, a adversidade também pode fazer nossos “trans” saírem para passear. É o exemplo do filme “Ensaio sobre a cegueira”, inspirado na obra de Saramago, no qual uma cegueira contagiosa leva toda uma sociedade ao caos e à deturpação, fazendo que o “trans” mais profundo e selvagem desabroche das pessoas na luta pela sobrevivência.
Se Freud estivesse vivo, talvez diria que esse “trans” é o império do “Id”, a coisa selvagem em nós, a fera que tudo quer e nunca dorme, sempre rondando a mente e a vida em busca das satisfações mais imediatas. Sim, o “trans” tem muito disso: o agressivo, o suprimido, o reprimido. Mas nem sempre precisa representar algo negativo. Pode significar a transgressão que leve à libertação, que rompa bloqueios e estigmas. Pode significar a transformação para um novo estado de equilíbrio. Como para passar de um ponto seguro a outro que sustenta a corda bamba, é preciso passar por ela e por todas as suas turbulências para sustentar-se, manter-se de pé e, finalmente, atingir o outro ponto.
Uma vez, visitei uma cave de champagne da França. A guia da visitação, para explicar o processo de produção de grandes garrafas de champagne, que são feitas por encomenda, chamou de transvasage o ato de entornar várias garrafas pequenas no bocal dessa grande, porque, segundo ela, não é possível produzir diretamente uma garrafa grande de champagne, pois isso comprometeria os processos de fermentação, gerando uma bebida de má qualidade. E é assim a vida, a existência: não há como chegar ao topo sem percorrer cada um de seus degraus. O homem não voa.
Da mesma forma, é preciso, muitas vezes, conhecer o abismo, o porão, o bolor. E não bastasse conhece-lo, faz-se necessário que o revisitemos diversas vezes. A viagem não é boa, mas a vantagem é que já conhecemos o caminho. Essa é uma forma de “trans” que não consegui encontrar no dicionário a palavra correta, que não significa retrocesso, derrota, recaída. É apenas uma revisita, como visitamos os mortos no cemitério, para nos certificarmos que eles estão mesmo mortos. Ou não.
Enfim, é preciso entender e aceitar que somos “trans”; que a alma é transmutante; que a vida é transitória; que o pensamento e os desejos se transvestem para ludibriar nossa razão, nossas limitações, com a única finalidade de realizar os desejos mais profundos da existência.
2 Comments:
Lendo o texto sobre "trans" tive a impressão de que você assistiu a peça da qual lhe falei!A Alma Imoral! Adorei!
Não apenas um lado, não apenas um ou o outro, os intermédios...
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