EU PARECIDO COM ALGUÉM versus ALGUÉM PARECIDO COMIGO (Como é a experiência de sermos iguais a alguém?)

Tenho 36(!) anos dos quais muitos passei rejeitando o fato de ser a cara do meu pai. Pela sua maldade, seu comportamento violento e sua rotineira rejeição, acabei vendo-o como o via em meus recorrentes pesadelos: feio, monstruoso, assustador. Odiava quando me chamavam pelo diminutivo do seu nome e carreguei pesadamente um sobrenome que levava consigo a carga dessa desprezível feiúra.
Nada curioso, sempre me achei feio e, mais ainda, lamentava não ter sido contemplado com os cabelos loiros e lisos, olhos verdes e pele alva, tudo vindo lá do sangue holandês de meu avô.
Foram precisos anos amassando o divã para reconhecer beleza em mim e mais outros anos para aceitar que ela vinha dele. Aceito isso, ficou muito mais fácil aceitar que ele foi um homem bonito, cuja beleza permanecia oculta pelo fog da maldade.
É claro que não fiquei discutindo nossa beleza em análise; foi no passo a passo de incontáveis sessões semanais ou bissemanais que a coisa toda foi se transformando; tanto que acabei me "tornando" o que sou agora ante meus olhos: um homem bonito, parecido com meu velho pai. Só não precisava ficar calvo.
Acho (digo apenas isso) que não o odeio mais e compreendo que ele foi apenas um garoto sem condições psicológicas mínimas para ser pai e, por conseguinte, para dar afeto. Nem materialmente soube compensar essa falta, pois tirou de mim tudo o que deu, sem nem explicar o porquê. Tenho apenas um saudosismo, uma mágoa, uma poçazinha de lágrima por não ter tido um pai diferente.
E agradeço a Deus e a Freud por ter fugido de suas vistas antes que ele conseguisse tirar as únicas coisas que ele me deu e sobraram: minha aparência e minha inteligência. Essas eu sei que o "alemão" e o tempo poderão carregar um dia. Mas ele não.
E vão passando os anos, o tempo me trouxe sobrinhos. Sobrinhos-filhos. Lembro quando Pedro nasceu. Fui visitá-lo na maternidade em seu segundo dia de vida. Fiquei tão cegamente apaixonado que cheguei a dizer que ele era a minha cara. Ele era a cara do Marcelo que eu desejava ser e tinha a alma do Marcelo que eu fui, desprezado pelo próprio pai desde o primeiro dia de nascimento. Pra piorar, lá estava ele, enrolado no mesmo xale cor de abóbora com o qual saí da maternidade. Quatro anos se passaram. Eu e o Pedrinho formamos uma baita dupla.
E chegou o Felipe. Esse eu realmente vi nascer. Na sala de parto. Vi a lágrima emocionada da minha irmã ao ver o filho; também a vi perguntando o que todas as mães perguntam, ansiosas por saber se o rebento é perfeito, se está tudo direitinho com ele. E ele não tinha cara de ninguém. Grande e robusto como meu cunhado, mas também como eu, como minha irmã. Cabelos e olhos escuros. Mas o tempo foi passando e a verdade foi revelada: ele é a minha cara.
Corri nos álbuns do passado para encontrar Felipes nas carinhas de Marcelos ou encaixar carinhas de Marcelos em rostos de Felipes. Perfeito. Os cachinhos dos cabelos, as covinhas no rosto, os olhinhos brilhantes. Encontrei um resquício, uma reminiscência de mim no fundo dos olhos dele. Olhos marejados, lembro-me de um tempo que é mais inconsciência do que qualquer outra coisa; lembro-me das mãos da minha avó, dos cuidados da minha tia. Esses tempos em que a gente só lembra de coisa boa e que nada atrapalha essa vivência. Eu tive isso.
E do mesmo jeito, nesse vai-e-vém do relógio e do tempo, é impossível não pensar no futuro. O que será desses meninos? Eles ficarão sadios, inteligentes? Conseguirão ser felizes? Será que se lembrarão dos beijos que eu dei e dos que me deram?
Impossível saber. A única certeza que tenho é que dei e dou amor a eles. Que amo-os como se fossem meus filhos; que dei a eles um amor que recebi de várias pessoas. Essa é a grande semente que faz com que as pessoas queiram vida, tenham sonhos, desejem respirar vida. Sim, a vida não existe sem problemas. Mas essas sementes de amor, quando crescem, viram uma grama fofa, que nem aqueles campos de golfe, para que a gente possa caminhar pela vida de um jeito mais suave. E tomara que eles não fiquem calvos.
6 Comments:
I loved your post, as always, Marcelo. And the words about your father touched a very personal nerve. Here is a poem by Sylvia Plath your description reminded me of. Your situation was, I trust, not as extreme as hers, but the verse will certainly resonate. Fasten your seat belt. It's a rough ride: http://www.internal.org/Sylvia_Plath/Daddy
I wish I had nephews to shower my love on to redeem the affection withheld by my father.
Thanks for another wonderful, moving piece, amigo.
-Velhinho
Esse me fez chorar... Muito bonito!
Thank you, velhinho. You have friends that are sometimes neighbours, sometimes nephews, sometimes fathers or sons. But you've been always a very good friend. Besos.
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A vida não existe sem problemas!
E... sem problemas não há vida!
Chorei!!!!
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