OLHAI OS LÍRIOS TRAZIDOS PELO CISNE NEGRO


Hoje fui assistir “Black Swan” no cinema. Fazia muito tempo que não “sentia” um filme. Saí perplexo, exasperado, angustiado. Alguém me disse que se identificou muito com o filme, que o filme tinha muito a ver com a sua própria vida. Concordo com ela e também com todos que ficaram tocados com a saga da menina escravizada em uma ditadura virginal e branca; pois quem é que nunca lutou, ao menos um pouco, para se libertar dos feitiços da opressão, que são as verdadeiras bruxarias da existência?
Passei horas após o filme pesquisando sobre algo pelo qual eu jamais havia me interessado antes: a verdadeira estória do “Lago dos Cisnes”. E descobri que, tal como todas as fábulas, contos e mitos, não existe uma única versão. O que se sabe é que, há mais de cento e trinta anos, essa tragédia é re-encenada e recontada de muitos modos diferentes. Há teorias de que ela provém de um conto das mil e uma noites, no qual um homem encontra um país habitado por donzelas-pássaro e que, ao tirarem suas penas, elas se tornam lindas mulheres. O homem então tira as penas e se casa com uma delas, mas numa certa noite ela veste as penas para poder voar e fugir dele, porque “as mulheres querem ser livres”.
E não são apenas várias versões. Vêm de diversos países. Os papéis se trocam, se invertem, se misturam. O feiticeiro é pai, é Cisne Negro, a irmã é cisne negro, é o mal, a princesa morre, ou morre a irmã, ou morre o casal, ou o pai é assassinado. A tragédia se resolve com a tragédia que lhe convém. Nada é imutável.
O filme me lembrou um outro filme que amei muito. “Cidade dos Sonhos”, de David Lynch. Assisti esse filme várias vezes, tentando em vão compreende-lo. Ficava debatendo com vários amigos sobre quem era quem, qual a charada do filme, até o dia em que li a entrevista de Lynch a um jornal, fixado no hall do cinema: “Não é um filme para se entender; é um filme de sensações”. E no próprio filme, como diz o mestre de cerimônias do Spazio Silencio: “É tudo uma ilusão”. Foi essa a sensação que tive com “Black Swan”. Um jogo de ilusões, as ilusões da menina enclausurada num cisne branco, casta, frígida e frágil, alucinando uma libertação. Mas, seja sonho, realidade ou enlouquecimento, a menina caminha por essa estrada. Cresce, enfrenta a mãe-bruxa, joga fora os guardiões de pelúcia da sua infantilidade, cria uma porta-escudo contra a invasão da mãe; erotiza-se, masturba-se, arranca pedaços de carne em beijos-mordida. Não é à toa que o cisne branco e o cisne negro são irmãs e rivais no filme: são as faces da mesma menina, é o cisne branco enfeitiçado pela mãe-bruxa contendo em si um cisne negro, carregado de força erótica, luxúria, volúpia, irrompendo pelo corpo branco-cárcere. Estando preso, toma ares negros, monstruosos. É a vida selvagem querendo saltar daquela vivência estéril. Para mim, é o cisne negro quem fere o corpo da menina. São suas unhas, suas garras, seus dentes de fera desejando sair.
A menina deseja ao mesmo tempo que teme essa libertação. Como no conto das mil e uma noites, é preciso ser depenada para se tornar livre. É preciso ser deflorada pelo instinto. É justamente quando ela se deixa seduzir por Lily, a amiga-rival que corporifica o Cisne Negro.
O nome Lily, ou “lírio” não foi escolhido por acaso. Saí pesquisando e, nas primeiras informações, o lírio seria um símbolo de pureza e castidade e dedicado portanto à Virgem Maria. Mas graças à minha grande amizade com Mr. Google, ele fez o favor de me contar que o lírio está ligado às deusas Vênus, Artemis e Minoan. Deusas do amor, da beleza, da fertilidade, da vida. Ele me contou também que os católicos consagraram o lírio à Virgem Maria, mas retiravam seus pistilos para que ela continuasse virgem. Mas a Lily do filme era um lírio com pistilo. Devoradora, defloradora, poderosa.
Mas para que o Cisne Negro reine e se liberte, libertando assim a donzela prisioneira, é preciso que o Cisne branco morra. Uma morte simbólica, logicamente, mas uma morte. O lírio também é usado para enfeitar as lápides das defuntas donzelas.
Sincronicamente, hoje, um amigo e leitor do meu blog, ao ler a minha postagem anterior, “Marcelo, marmelo, martelo”, me presenteou com um novo conceito: “encruamento”. Encruamento, também vindo da física, seria o contrário da resiliência, termo tão utilizado e até “batido” no dia-a-dia de “psicocoisas”. Enquanto resiliência pode ser ser traduzido como a capacidade de suportar, ou a propriedade de se deformar frente a uma pressão e conseguir voltar ao lugar ou forma de origem, o encruamento é o fenômeno no qual o corpo recebe uma pressão e, ao invés de deformar, ele enrijece tanto que acaba se partindo.
Era isso o que acontecia com Nina, a personagem do filme. Encruamento. E ela encruou tanto, mas tanto, que acabou partindo, quebrando, rachando. Resta a dúvida: será que ela se partiu como partem os casulos, liberando borboletas, desejos-instintos? Ou será que o partir-se foi uma cisão, desabrochando em sintomas, em loucura ou morte mesmo?
Só saberíamos se houvesse uma continuação do filme. Black Swan II: o epílogo. Nina seria agora uma linda e famosa bailarina casada com seu produtor sedutor ou a encontraríamos sentada no banco gelado de um hospício, gorda de tomar Zyprexa? Ou uma dançarina lésbica que abandona o Lincoln Center para formar uma companhia de dança alternativa, regada a muito Haxixe e Ecstasy? De todo modo, a Nina do filme não teve escolha. Mas as muitas Ninas, oprimidas, trancafiadas em cisnes brancos por aí, muitas ainda têm saída.
2 Comments:
Lindo. Adorei!
Voce eh fantastico ao escrever. Tem certeza que nao quer me dar umas aulas de ciencias dos materiais?
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