Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Thursday, February 10, 2011

MARCELO, MARMELO, MARTELO


Não sei se já nasci feito ou se fui feito pelos anos compartimentalizantes. O fato é que, desde que me conheço e me reconheço como pessoa, tenho esse porte, gordinho, e essa postura, de bonachão. Nunca fui muito ligado em grandes aventuras, embates físicos e sujeira nas roupas.

É verdade que meus pais me vestiam de terninhos com cravo artificial na lapela e sapato social para festas infantis. Lembro que uma vez escorreguei num quintal brincando de pega-pega com essas roupas assassinas; fui levantado do chão pelo meu próprio pai, já me sacudindo violentamente como um tapete sujo. E ainda posto de castigo. Deve ser essa a razão de eu não suportar terno e gravata. E foi então que eu cresci assim: gordinho, pacato, comilão e adorando ficar batendo papo com as mulheres.

Mas é fato que a energia não pode ficar presa; tem que escapar pra algum lugar e demorou muitos anos para virar rebeldia. Foi então que passei a adorar as diversōes secretas e silenciosas. Agradeço hoje aos déspotas: a prisão me fez escritor. A escrita serviu para libertar o escorpião-águia, culto, mental, sublimador.

Ocorre que a escrita esfria, mas não transforma essa energia lúdica; o escorpião-dragão não podia cuspir seu fogo, rebelar-se contra as tiranias, e passei a aprimorar meus requintes de prisioneiro. Passei a gostar de me "vingar" das pessoas que me faziam mal ou me humilhavam. Ativei o escorpião-serpente.

Lembro de um conhecido da família que sempre me maltratou. Ele me batia, me xingava de gordo, me empurrava e me excluía das brincadeiras. Sendo mais velho, mais bonito e de família rica, era sempre ele que ditava todas as regras de todos os jogos. Nunca tive uma oportunidade de me defender.

Num Natal perdido pelos anos, estávamos na chácara de sua nobre família. Como sempre, todos brincavam, eu de escanteio. E foi naquele dia que decidi lhe dar uma lição. Ele havia ganho um relógio G-shock do Papai Noel. Mostrava orgulhoso para todos o presente. Numa rápida oportunidade, entrei no seu quarto, peguei o relógio e enterrei no quintal. E, exatamente como esperava, saboreei sua aflição tentando explicar ao seu pai o sumiço do relógio. Apanhou, ficou de castigo. Tudo o que ele merecia. E no final do dia, tratei de libertá-lo da prisão, colocando o relógio no exato lugar onde encontrei. Ele nunca mais me bateu. Lógico que não foi por isso, mas porque eu cresci e me tornei um cara corpulento, forte; também porque crescido, não era mais obrigado a estar com ele em momento algum.

Quando estava na quarta série, estudava num colégio de freiras no bairro do Paraíso, o Nossa Senhora da Consolação. Foi nele que nasceu minha paixão pelo voleibol, coisa também extirpada pela guestapo familiar uns anos depois. O problema era que, no jogo de vôlei da escola, havia um "repetente" e sua amiga que maltratavam os alunos menores. Jogadores profissionais, oscilavam sua perversidade entre dar tapas na cara quando errávamos o jogo ou dar “cortadas” sobre nós quando estávamos no time oposto. Nunca tive oportunidade de castigá-lo. Mas sua comparsa cínica, essa eu consegui. Estávamos em alguma dessas aulas ridículas, como educação artística ou religião, esperando o tempo passar. A tal menina estava na minha frente, pendurada na carteira, com as pernas balançando, de frente para o professor. Enquanto isso, tratei de movimentar a cadeira dela, deslocando-a para fora do espaço da carteira, fazendo-a cair com tudo no chão. Essa não pode ser anônima. Ganhei. Mas também fiquei de castigo depois da aula, copiando textos da bíblia.

Nessa mesma escola também tinha uma menina muito, muito irritante. Escrevia tudo com canetinhas de várias cores e, no final da aula, disparava feito uma bala, empurrando todos na sala, para sair em primeiro lugar. Não sei se era porque sua mãe era muito brava e já estava esperando no portão, ou se era porque já dava, desde muito cedo, sinais de sua personlidade competitiva. O fato é que, num dia de grande inspiração, amarrei a sua lancheira e a sua mochila (sim, ela usava uma lancheira!) na cadeira, na mesa com o meu guardanapo de pano. O resultado não podia ter sido melhor: a criatura ficou presa na sala de aula, se debatendo, ficando para trás de todo mundo quando o sinal bateu. Essa não rendeu castigo, porque ninguém descobriu quem foi. Rendeu foi muita piada com a chatonilda.

O tempo passou e acabei aprendendo a me defender, a dizer o que penso, a recusar qualquer tipo de opressão. Não existe mais a necessidade de me vingar, porque quase não sobram esse tipo de pendências. E o que sobra, vira blog.

Resolvi fazer essa “confissão” porque, numa viagem recente, ouvi várias dessas estórias da boca de várias pessoas. A mãe de uma amiga confessou que adorava furtar o dinheiro do saco de doações da igreja e também da sacristia; disse também que costumava levar revistas pornográficas na aula de catequese e mostrar para os colegas.

Um conhecido meu revelou ter queimado o cabelo de uma garota dentro do cinema por tê-lo chamado de “viado” e grudado chiclete no cabelo de uma outra enquanto ela assistia a um filme.

Essas várias estórias de vinganças infantis me fizeram pensar em quantas vezes somos vítimas de violência, o tão falado “bullying” e como isso pode influir na nossa auto-estima, na nossa capacidade de defesa na vida futura. De algum modo, essas “estratégias de defesa” serviram para criar um verdadeiro escudo que protegeu e preservou minha integridade psíquica.

Fiz algumas dessas “vingancinhas” com meu pai. Era a única forma que tinha de exibir alguma defesa àquela violência toda, àquele não gostar. Lembro ter escondido o isqueiro uma vez; o maço de cigarros na outra e as chaves do carro. Adorava vê-lo irado por não encontrar nada. É claro que o feitiço virava com o feiticeiro, porque ele nos culpava pela desorganização e muitas vezes acabava brigando conosco ou mandando eu ir comprar isqueiro, cigarros. Mas o fato de saber que controlava alguma coisa dele, que ele não podia obter, alcançar, me regalava um momento de felicidade, de vitória sobre toda aquela opressão.

Que bom seria que todas as crianças pudessem crescer com amor, com liberdade, como crescem meus sobrinhos, os filhos de alguns amigos, alguns primos. A conta dos analistas ia ser bem mais barata, teríamos bem menos gente doente e infeliz. Eu estou livre, mas ainda penso no tanto de gente que é escrava da violência, da rejeição e do desamor.

2 Comments:

Blogger Fernando Prado Farias said...

This comment has been removed by the author.

7:34 AM PST  
Anonymous Rafael said...

Muito interessante!

Essa dimensao de que "cresci e nao sou mais obrigado a ver" me ajudou muito tambem... Porem, nao e' sempre que a gente consegue se livrar da presença de algumas pessoas.

Voce soube se defender. O que nao te faz menos vitima...

10:32 PM PST  

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