OS NOVOS SACIS

Embora minha infância não tenha sido totalmente boa, eu conservo alguns fragmentos, algumas memórias de coisas legais desse período. Acho que essas pequenas coisas foram “sachês” de vida que preservaram a minha existência e minha integridade psíquica.
Há uns dois dias ouvi no rádio a música “A novidade”, do Gilberto Gil. Eu gosto muito dessa música, mas ela me fez lembrar a música do Sitio do Pica-pau Amarelo. E o Sitio foi, sem dúvida, um dos instrumentos de preservação dessa integridade.
Lembro como se fosse hoje da Vovó Anastácia, da Dona Benta e todos os personagens reais e fantásticos que compunham aquele cotidiano. Aquilo fazia tão parte de mim, que era como se eu vivesse ali, com todas aquelas personagens. Por muito tempo carregava comigo uma caixinha de madeira, cheia de badulaques, que representava a canastra da Emília. Era a minha possibilidade de transmutar coisas, fazer o mal desaparecer e transformar a dor em riso.
Eu adorava os sacis do Sítio. Lembro do Saci-Pererê, o Saci-Matinta-Pereira e todos aqueles outros, brincalhões, arteiros, matreiros. Numa certa época cheguei a comparar os sacis aos Exus-mirins, pela sua capacidade de fazer traquinagens, pela irreverência e rebeldia.
E não era só na televisão que o Sítio me acompanhava. Lia gibis, tinha a obra completa do Sítio de Monteiro Lobato e cheguei a ter uma miniatura de pano do Visconde de Sabugosa. Lembro-me como se fosse hoje quando minha mãe contratou um Emília e uma Cuca para animarem minha festa de aniversário. Acho que a Cuca servia pra lembrar que o mal estaria sempre por perto...
Mas nesses últimos dias, essa imagem imaculada que eu tinha do Sítio foi vilipendiada. É como se um tsunami tivesse chegado lá e destruído tudo, naquele cantinho da minha mente que preservava tão vivida suas lembranças.
Ainda na minha peregrinação “filosófica-mística-repousística” em Salvador (Êta, Bahia que rende mais que cuscuz!), descobri que, mais recentemente, o crack está dominando a “cena”, como em vários lugares do Brasil e do mundo. Crianças, jovens, adultos, das classes mais miseráveis até a classe média, “tocando” seus dedinhos pretos e esfumaçados nos bolsos e gostos da classe rica, todo mundo tá na onda do crack.
Capoeira? Timbalada? Olodum? Que nada! “Gostoso” mesmo é tomar “pauladas” de crack, agachado no chão, encolhido de medo e paranóia, num beco, numa rua escura qualquer do Centro Histórico. E o povo apelidou de “sacis” esses meninos, em sua maioria negros, andando de um lado pro outro, pitando seu cachimbo.
Espalhados pela cidade, cartazes dizendo “Nunca experimente o crack. É uma droga que mata.” Quem vai ler isso? Será que os “sacis” sabem ler? Será que vão ler? Não creio. Dizem que se conselho fosse bom, ninguém dava de graça”, e acho que é bem verdade. Até porque acho que a maioria dos usuários, não lerão o recado. E quem ler, não vai acreditar.
Está faltando transcendência. Está faltando mística. O vazio e a falta de sentido nas coisas tomaram o lugar daquilo que realmente tem importância. Os “sacis” tomam suas pauladas diárias e ininterruptas; as madames consomem bolsas e grifes; os magnatas se refastelam em seus carros blindados, seus uísques de doze anos e seus charutos cubanos; as beldades consomem vorazmente seus anorexígenos, seus Bottox, seus implantes; os gordos se entopem de chocolates, sorvetes e macarrões.
Nessa alquimia de transformar cérebros humanos em retardados, de tanto fumar crack, o Sitio do Pica-pau Amarelo faliu. Quebrou. Que saci que vai achar graça num sítio, onde tudo é bom e mágico, onde as coisas são simples e, principalmente, não tem pedra? Nessa realidade cinza que vivemos, sobra apenas um tipo de “sitio”: o das casas de recuperação.
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