Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Sunday, April 24, 2011

PARA ALÉM DA ÉTICA CRISTÃ.



Depois de uma temporada em New York, minha grande amiga e eu decidimos explorar um pouco mais a minha-nossa cidade. Não, não estou falando de Paris. Essa vai ter que esperar um pouquinho. Estou falando de São Paulo. Antes que os zumbis da Cracolândia tomem conta de toda a cidade, temos que conhecer ou revisitar uma porção de coisas dela.

E hoje, em pleno domingo de Páscoa, no ápice do renovação católica com a ressurreição de Cristo, resolvemos inaugurar o nosso “tour de ville” indo à missa do Mosteiro de São Bento. A igreja em si é um luxo. Quando morava no centro da cidade, costumava ir aos fins de tarde assistir às missas e ouvir seus cantos gregorianos. Tenho uma certa afinidade com essa facção católica, seus cânticos, seus costumes, seus trajes. Adoro quando os monges entram defumando a igreja com mirra, cantando aquelas coisas que não entendo.

Mas a atmosfera da igreja hoje não era de sonho. Tava mais para pesadelo. Chegamos em cima da hora de começar a missa e ficamos sem lugar para sentar. Lá dentro, um mundaréu de gente, já ocupando os corredores laterais, sentando-se nas muretas dos pés dos santos, conversando e tirando fotos. Claro que isso não é uma cafonice tipicamente brasileira ou paulistana. Por qualquer igreja que eu tenha andado, em qualquer lugar do mundo, tem montoeiras de gente fazendo coisas inadequadas dentro de igrejas e outros tipos de templos.

Tinha de tudo na igreja. Um passa-passa sem fim. Gente se minhocando para passar na frente das outras pessoas, uns pra ficarem mais perto de Deus, outros para tirarem fotos mais bonitas. Um senhor de porte respeitável ao meu lado se enfezou antes de mim e se postou ao meu lado, feito um dois de paus para barrar a passagem nos chateuntes. Desistiu no terceiro idiota que vinha dizendo “cença” e passando por entre nós dois. Eu tive vontade de chutar canelas, dizer impropriedades e dar cotoveladas, mas a minha balança temperamental estava em superávit de paz de espírito. E ainda pedi perdão pelos pensamentos. Abstraí, tentando bater um papo com São Bento, pedindo que ele me protegesse, me abençoasse e um tanto de coisas mais. Mas a minha conexão com ele dava “pau” toda hora. Era um velho, tipo frontalizado, que falava alto no canto da igreja com sua mulher, que respondia, e o babaca do seu filho, que retrucava. E o eco de suas vozes ecoava mais que o canto dos monges, mais que a voz de São Bento em meu coração. Acho que é por causa de uma lei da física, que faz os cantos transmitirem os sons melhor, ou coisa parecida. Muito chato.

Dali há pouco veio um outro velho, esse com cara de tarado, e se enfiou na frente da família-eco. Achei que fosse parente, mas minha amiga falou que o velho-eco ecoou ao tarado que ele estava “na sua frente” e o tarado foi embora. Pelo menos nisso a família-eco ajudou. Mas continuavam, em seu retumbante eco, obstruindo minha comunicação com os monges do Céu. Chiado por chiado, resolvi mandar um “xiiiiiiiiiiiiiiiii” bem chiado que calou aquele eco todo. Mas acho que chiei tão forte que espantei até São Bento.

E tudo ali era Sodoma e Gomorra. Enquanto os monges caprichavam em seu latim comportado, aquele falatório. Crianças chorando, celulares tocando, barulhos de máquinas fotográficas, “splashs” de flashs inconvenientes. Eu tirei algumas fotos. Sem flash. Algumas mensagens chegaram em meu celular. Sem barulho. Eu fiz “Check In” no meu Iphone. No silencioso. Ó Deus, perdão. Culpei os incautos pela perda de conexão com São Bento, mas talvez tenha sido mesmo meu TDA. Perdão.

Aquele buzuzu todo foi me irritando. E o calor? Um calor dos infernos! Ops, foi mal... Um calor senegalês, como diria um amigo meu. E com o calor, o tradicional “cheiro de gente”, como disse um paciente meu. Ainda não era suvaquismo. Era aquele cheiro de calor humano, aquele bafo morno que paira pesado no ar e dá um mal estar parecido com encosto. Num certo ponto da missa, os monges voltaram a defumar a igreja, jogando fumaça no turíbulo em volta da bíblia. Para mim isso era desculpa para espantar o cheiro de gente. Mas nem aquela mirra toda foi capaz de dispersar aquele bafo todo. Tanto que, logo após, eles começaram a aspergir o “sangue de cristo” com uma “mohadeira” enorme. Que sangue, que nada. Aquilo pra mim era água de cheiro gelada e diluída.

E após uma hora de cerimônia, os chateuntes começaram a se movimentar. Sim, como o calor é capaz de fazer formigas, baratas e lagartas saírem dos buracos, e lá começaram as pessoas a andar de um lado para o outro, incomodando quem estava tentando alguma conexão com o divino, com o artístico ou contanto até dez mil para não falar algum palavrão bem na cara de Deus. Os que estavam na frente decidiram passar para o fundo para tomarem ar e os que estavam no fundo decidiram chegar mais pra frente para verem melhor. Um caleidoscópio de movimentações humanas bem no meio da missa.

A essa altura, com as costas doendo, suando em bicas e com 20 pontos positivos no meu irritômetro particular, dei aquela olhada para minha amiga e disse aquele tão sonhado “Vamos?” que já rondava seus lábios e neurônios há horas. Tanto que, quase sincronicamente, o meu “Vamos” foi pergunta e resposta ao dela. E saímos, decepcionados, entristecidos e desanimados com a aventura.

Tanto que abortamos a apresentação de canto que haveria logo após, fugimos do Café Girondino e desanimamos do Centro Cultural Banco do Brasil. Mortos de fome, fomos perseguir burekas no bairro do Bom Retiro, em vão. E no auge da fome, perseguir burekas virou uma questão de honra. Lá fomos nós peregrinando pelos Borsch Belts paulistanos. E nada de burekas. Mergulhados no judaísmo inerente de Higienópolis, assentamos nossas burekas em favor de um pequeno pingado e pão com queijo. Gouda, ao menos.

Agora entendo porque a Abyssinian Church, do Harlem, faz os turistas se organizarem em filas e só permitem que eles entrem depois de horas de fila, humilhantes e inquisitivas provas de fogo e somente depois que todos os habitués da igreja estão acomodados. Achava que tinha a ver somente com o respeito com a comunidade que frequenta a igreja; mas é um respeito maior: com a própria igreja enquanto templo, com o culto e com os fiéis. E eles ainda têm ar condicionado.

Já disse que nasci católico e fui batizado pelo Frei Orestes, um monge beneditino em Campos de Jordão. Não sou mais católico e, com exceção de algumas missas em algumas igrejas específicas, acho o ritual todo um pouco parado. Sei que Deus e seus anjos estão lá, paradinhos, como lhes convém numa missa católica. A missa, sobretudo essa, com tanta formalidade e pompa, é o baile de gala das coisas do espírito. Mas prefiro ver Deus e seus emissários dançando o “samba” dos cultos afro-brasileiros. Porém, seja na missa - e qualquer que seja a missa -ou qualquer outro tipo de culto que louve a Deus em primeira instância, deve ser digno de respeito e postura. Silêncio onde cabe o silêncio, palmas, cantorias e dançam quando se é permitido e requisitado.

E é essa ética que falta à maioria dos visitantes de templos, igrejas, museus e sepulturas, principalmente em lugares sagrados. Falta o compromisso com o respeito, com a postura, com a boa educação de saber se portar num ambiente como esse. Cristão ou não cristão, não é essa a questão. Ateu, deísta ou seja qual for a religião. Ao entrar na casa do seu deus ou do deus de quem seja, acreditando ou não que ele possa bem ser o mesmo, respeite essa casa, como se fosse sua. Agora: o que fazer quando o cidadão não sabe respeitar nem a própria casa? Daí ferrou.

Friday, April 22, 2011

SABEDORIA OCULTA NAS BORDAS DO MUNDO


Todo mundo já ouviu falar de pessoas muito simples, mas muito sábias. Pessoas que não tiveram acesso a escola, a cultura, mas guardam em si uma sabedoria ímpar. Seja um velho caboclo na porta de um empório numa cidadezinha perdida do interior de qualquer lugar, seja a avózinha simplória com a barriga encostada no fogão de lenha, a benzedeira no pequeno vilarejo de pescadores e até mesmo a nossa modesta faxineira (Se bem que a minha não é nada dessas!). Pessoas simples, de poucos ou quaisquer requintes e português parco, mas capazes de proferir pérolas de experiência, sabedoria e evolução em simples frases.

Cada vez mais o mundo e a humanidade correm atrás de valores invertidos. Corre atrás dos dinheiros, das posses, dos diplomas e cada vez mais se esquece da alma, da sabedoria humana, das coisas mais naturais do viver. Vejo o desespero de algumas pessoas para obterem aquele carro mais novo, mais moderno, mais caro. Não pelo conforto, mas pelo confortável prazer de mostrar-se. Já faz algum tempo, convivia com um sujeito desses “mostradores”. Saímos para almoçar um dia e, na saída do restaurante, procurei o seu carro e ele disse: “Não, não é mais aquele. Agora é esse aqui.” Dei os parabéns pela nova aquisição e ele respondeu: “O outro estava uma carroça.” Um tempo depois, soube que ele havia se mudado para um bairro mais chique, para um apartamento melhor, ainda alugado, mas ainda sem móveis e sem televisão. Cada um faz o que bem entende com o seu próprio dinheiro; mas era óbvio que, para ele, era mais importante o que saltava aos olhos. Dos outros.

Às vezes somos aconselhados por atendentes de botecos, por faxineiros de aeroportos, por humildes taxistas. Numa simples corrida de cinco quilômetros podemos ter conferências gratuitas com “Dalai Lamas”disfarçados pela cidade. Gente iluminada, que não se iluminou com livros, diplomas, línguas, estudos ou viagens. Gente que é luz por si só e que nos torna pequenos, miúdos, simplórios, ignorantes e neófitos da vida perante tanta sabedoria.

Quando penso nesse tipo de pessoa, lembro do “Seu” Serginho. Um negro baixinho, magrelo, de sorriso largo e cabelos grisalhos que trabalhava de caseiro numa empresa do meu pai. O velho estava sempre de bem com a vida, sempre pronto a ajudar. Comia a mesma comida da sua cadela Zuzu, fumava cigarro de palha e, quando sentia que o clima estava pesado, acendia uns incensos de tablete lá no porão onde morava. Eu costumava passar horas brincando e conversando na casa dele, longe dos barulhos e agressões do meu pai. Era minha fuga, meu porto seguro, meu calmante. Só vi tristeza em seus olhos quando Zuzu escapou pelo portão da casa e desapareceu. Mas logo se conformou e tratou de se ocupar com as outras coisas da vida, respirar fundo e seguir em frente.

Lembro também da Dona Darci, a funcionária da farmácia do hospital onde trabalhei. Sempre contente e paciente com todo mundo, sabia escutar e estava sempre pronta a ajudar as pessoas à sua volta. Costumava ficar um tempão conversando com ela, sobre a vida, trocando receitas, dando opiniões e comendo seus quitutes. Era o tipo de avó que eu queria ter para mim e por muito tempo cultivei essa “avozagem” ao seu lado.

Eu poderia ficar horas relembrando pessoas que fizeram essa amorosa diferença em minha vida. Mesmo essas com as quais convivi pouco e que encontrei durante alguns minutos, por vários dias da minha vida, me retribuindo um sorriso ou um bom dia no balcão de um boteco ao tomar um café.

Mas o mais importante disso tudo é a energia que essas pessoas evocam. Em tempos de páscoa, ainda que com valores perdidos, somos levados de alguma forma a refletir sobre caridade, generosidade, bondade. Repartir o pão, doar-se, ajudar o próximo. Fico saudoso de tantas pessoas que me deram muitas mãos nessa vida e saudoso desses pequenos grandes sábios que passaram por mim e deixaram seus ensinamentos. Sinto uma imensa felicidade por estar cada vez mais cercado por pessoas tão importantes em minha vida, mas sinto saudades de tanta gente que já passou e, possivelmente não voltará mais.

Eu ainda sou meio “de mal” com a morte e com a finitude, mas sou muito mais brigado com essa morte em vida. Esse desenlace. Esse desatar. Esse perder-se que por vezes ocorre. Enquanto escrevo, vejo as cíclicas imagens das fotos de muitos anos e histórias da vida, contados através de viagens, almoços, jantares, passeios. Deu saudades de um monte de gente. Deu saudosismo. Deu um nó. Em plena sexta-feira da paixão, estou acordado, vendo a vida passar em letras e fotos, sem saber ler ou perceber muitos dos seus signos.

Quem será a velhinha sábia que decifrará tais enigmas? Quem vai me explicar por que algumas pessoas morrem e outras desaparecem? Quem será o porteiro e de qual prédio e em qual bairro que chegará, dará um tapa em minhas costas, afirmando que tudo terminará bem?

Eu sei que hoje é apenas sexta-feira santa. Ainda tem o sábado de Aleluia e o domingo de Páscoa, tal como os ritmos da vida. Feito criança curiosa esperando o coelhinho trazer os ovos de páscoa, espero ansioso pra ver o que me reserva a vida, o que esperar das coisas, das pessoas.

ENCONTRAR ALGUÉM


Antes de abandonar o velho e mofado closet, várias contradições circundavam os pensamentos de André: não acreditava em Deus, mas pedia de joelhos a Ele que fizessem seus pais pararem de brigar durante a madrugada; dizia que não queria casar, que queria ser padre, mas vivia chorando ao ouvir músicas românticas e ao assistir filmes de amor. De fato, após tanta dor, tanta angústia, tanto medo e ainda mais, depois de ter vivido alguns longos anos com “um cavalo vestido” – uma sábia alusão de um amigo à pessoa com quem foi casado – ficava difícil acreditar na possibilidade de amar alguém.

Logo após seu oficial coming out, mergulhou numa maratona a nado pelo pântano dos encontros pela internet e, considerando já ter certeza absoluta de que gostava de homens e pela dificuldade em encontrar algo mais sólido que um pênis – carinho, cumplicidade, amor...- rapidamente ficou cansado de encontros fortuitos e arriscados. Sim, o sexo foi ótimo, mas faltava algo que ia muito além do sexo. Mas, sem dúvida, guarda boas e engraçadas lembranças desse tempo.

Numa madrugada fria, André estava na internet, doido de tesão e de medo. Naquele tempo ainda se disfarçava de “bissexual”, pois acreditava que sair com alguém casado ou noivo ofereceria mais segurança no que diz respeito a escândalos públicos. Até descobrir o quanto as pessoas mentem pela internet. Conversando com um cara, perguntou a ele se ele era mesmo “bi” e ele perguntou raivosamente a André:

- E que diferença isso faz?

-Nenhuma. – respondeu. E resolveu encarar. Eram duas da manhã. Saiu de casa ao seu encontro, com todo o arsenal necessário: cueca bonita, preservativos, lubrificante. Seu nome era Wilbor. Gringo? Chique? Não, cafona mesmo. Dizia ter trinta e cinco anos, mas André lhe daria bem uns quarenta e cinco. Mas tinha corpo bom, transava bem. Passaram a noite – ou o resto dela – juntos. Ao acordarem, parecia que moravam juntos: uma assustadora cumplicidade por parte dele, como se fossem muito íntimos. Falava de se encontrarem no final do dia, de jantarem fora, mesmo já tendo dito que era noivo (esse era o “personagem sexual” de André...). Mesmo assustado, a possibilidade de ter uma pessoa com quem pudesse ter algo além de um sexo-expresso, principalmente um bom sexo, o atraía.

Marcaram de almoçar na casa de Wilbor, num sábado à tarde. André saiu da ginástica e foi encontrá-lo. Honrando a tradição casamenteira de que “o peixe morre pela boca”, Wilbor não mediu esforços para concluir sua pescaria: preparou um banquete, com tudo do bom e do melhor e durante o preparo, e durante o almoço, e em todos os momentos, muitas preliminares... Mas a decepção de André com sua espontaneidade veio a cavalo: enquanto preparava a sobremesa, colocou um CD da Sarah Brigtman e, quase como uma mulher enlouquecida, tirou André pra dançar, que logo desculpou-se, dizendo que era tímido. Mas Wilbor, não se fazendo de rogado, continuou dançando pretensamente sexy diante de André, como faziam as chacretes da Discoteca do Chacrinha. Passada a indigestão do tal showzinho, empurrado goela abaixo pelo excelente almoço, foram para a cama. Não só para a cama: para o chão, para o chuveiro, para a cama de novo...e, esgotadas as forças, ficaram lá, largados, conversando....começava a anoitecer e, com a escuridão, desaparecia seu senso de razão e crescia o medo de André. Também o assustava o robe de seda com flores cor-de-rosa que Wilbor vestiu após o banho.

- Vamos fugir?

- Como assim?

- Acho que vou raptar você pra ter você só pra mim. Então André havia entendido. Na cabeça de Wilbor, André era uma vítima indefesa do seu noivado e ele seria a salvação. Hora de zarpar.

-Bem...acho que tenho que ir embora...

- Ah, não !!! Você prometeu que ia passar o dia comigo!!! Disse ele, apertando “de brincadeira” o pescoço de André com as mãos.

Se até aquele momento André não entendia muito bem a acepção do termo “bicha-louca”, agora estava mais do que claro. Bicha-louca não são aqueles homossexuais afetadíssimos, cheios de trejeitos, como pensava...Wilbor era uma bicha-louca...faltavam vários parafusos na cabeça dele... André ficou com tanto medo daquele acesso de fúria que decidiu permanecer por mais algum tempo e sob a promessa de verem-se novamente. Daquele sábado em diante choviam mensagens pelo telefone, cafoníssimas mensagens animadas por e-mail e milhões de “eu te amo”... André acabou percebendo que, não bastasse o seu medo, que já lhe causava enorme mal-estar, estava sendo desonesto com Wilbor pois, embora não dissesse que o amava, não colocava um fim nesse papo. Resolveu mandar-lhe uma mensagem, onde explicava que o achava uma pessoa muito legal, mas que não estava preparado para um relacionamento. E nunca mais se encontraram.

Como disse, André guardou consigo várias histórias curiosas que vão muito além do bom sexo. Mas a história do seu encontro com Giuliano foi uma das mais pitorescas. Era um garoto de vinte e quatro anos e, de acordo com a foto – e a presença confirmava a foto – era bem interessante. Marcaram um encontro num lugar próximo a sua casa e, mediante magnetismo imediato, correram para seu apartamento. Pouco conversaram. Em um minuto o garoto pulou em cima de André, beijando, acariciando, gemendo, numa tal incandescência que, embora empolgante, trazia algo estranho no ar. Já explico: à medida que a empolgação foi crescendo, partiram para as vias de fato e, na iminência da “hora H”, melhor dizendo, a poucos milímetros da penetração, ele começou a gritar:

- Pára, pára, que eu tenho asma e não consigo respirar!!!

André parou. Parou tudo, exceto a vontade de rir. Mas venceu o instinto. Sabia que aquilo não era uma crise de asma. Só não sabia do que exatamente se tratava. E então começaram a conversar, e Giuliano falava o quanto sua mãe era importante em sua vida e como era difícil pensar que nunca lhe daria um neto. Mais uma vez tiro o chapéu para o bom velhinho – ele mesmo, o velho Freud – que afirmou que a histeria não acometia somente as mulheres. E imagino que, sem saber, André havia testemunhado um gozo histérico.

Sunday, April 17, 2011

O CABOCLO QUE RECEITAVA CATAFLAN A POMBA-GIRA QUE COMIA PIZZA E A OXUM QUE IA NA FEIRA



Quando era pequeno, sentia muito medo das coisas espirituais. Católico de formação, frequentador assíduo e entediado das missas de domingo.

A lembrança mais curiosa que tenho do catolicismo foi ter assistido o casamento dos meus pais na igreja. Acho que minha mãe inventou isso numa atitude de desespero, mas penso que ela se equivocou com o sacramento, pois acharia mais cabível a Extrema Unção do que a consagração do matrimônio propriamente dita. Mas como sempre ouvi dizer que devemos ter muito cuidado com o que pedimos a Deus, talvez tenha sido essa benção que tenha arrastado essa união por mais alguns árduos anos.

Não exatamente pela formação católica, muito mais pelo medo com que esses assuntos eram tratados em minha casa, sentia um pavor com qualque coisa relacionada a esses assuntos de espíritos. Mas, como a vida é paradoxo, lembro de ter sido levado a um centro espírita para tomar uns “passes” quando morreu minha avó.

Por volta dos doze anos, comecei a ler cartas e, apesar da pouca idade, fazia previsões que descabelavam minhas consulentes. Apesar do proibicionismo vigente em minha casa, consegui, às escondidas, manter o hábito da cartomancia e, por volta dos vinte anos, levado pelo desespero da vida em decadência, bati pela primeira vez, na porta de um terreiro de umbanda.

Frequentei centros de umbanda e candomblé por vários anos. Fiz cursos, participei de festas. Gosto e respeito muito. Parei de frequentá-los porque percebi que, apesar da crença e da beleza do culto, não suporto a vaidade dos líderes e, sobretudo, a desonestidade de muitos deles. Cheguei a ficar ateu por quase cinco anos, mas a espiritualidade voltou a bater em minha porta e resolvi deixá-la entrar em minha vida. Ainda estamos em fase de “namoro”…um intimidade estranha, uma certa formalidade, como aqueles casais que foram amantes longos anos, se afastam e se reencontram tempos após.

Uma coisa que sempre me divertiu muito nesses cultos é a incorporação. Acho interessante a forma com que os espíritos “baixam”, as diversas apresentações das correntes ou linhas, a mudança da voz, a forma de andar, o beber sem ficar bêbado. Uma vez vi um cara ficar bêbado tomando a água que o espírito lhe dava.

Mas o que realmente chamo de divertido e é o assunto que me proponho a tratar nesse texto, são acontecimentos hilários que presenciei enquanto frequentador. Com todo respeito às entidades, pois sei que não eram elas que diziam ou faziam tais absurdos, mas a porção desastrosamente consciente dos médiuns incorporados.

Certa vez, no centro que frequentava, chegaram os caboclos . Era bem bonito. Havia uma mulher muito bonita que frequentava o centro. Era elegante, charmosa. Sua roupa branca impecável. Suas incorporações deslumbrantes. Sempre tive uma ligação especial com ela e com seus “guias”. Ela recebia uma Cabocla Jurema que dava passes nas pessoas com folhas de samambaia. O único problema era quando ela abria a boca no lugar da Cabocla. Certa vez, um jovem se consultava com ela. Eu estava do lado, fazendo as traduções “caboclês-português”. O jovem estava com dor nas costas e ela não se fez de rogada: “Zi fio vai na farmácia e toma catafran , mas zi fio não esquece de fazer comedor antes pra não doê o estômago”. Tive vontade de rir e foi o que fiz.

Tinha uma amiga que contratou uma faxineira que se dizia mãe-de-santo. Passado algum tempo, a arrumação da casa dela ficou em segundo plano e a faxineira dedicava seu tempo de trabalho incorporando seus “guias” e fazendo consultas na casa da minha amiga. Certa vez ela recebeu Oxum . Deu os gritos e os passos característicos , rodopiou no meio dos móveis da sala. Depois, ainda em transe, despediu-se das pessoas, catou a sacola, abriu a porta e saiu pela rua, cambaleando e gritando. Preocupados, saímos todos atrás dela. Ela andava rápido, obstinada. Atravessou uma avenida movimentada e entrou na rua da feira. Dirigiu-se a uma barraca de ervas, pediu algumas folhas, saiu sem pagar. Antes que a dona da barraca se irritasse com a santa, tratei de pegar pelas encomendas. Rapidamente retornou à casa, explicou à minha amiga como fazer o tal banho de “descarrego”e partiu, deixando a faxineira desmaiada na sala.

Minha mãe tinha uma amiga que se dizia mãe-de-santo. Uma vez me convidou pra visitá-la. Quando cheguei na casa dela, percebi uma movimentação estranha. Estavam preparando uma sessão espírita. Rapidamente ela incorporou a pomba-gira, muito respeitada naquela casa. Foi obrigado a me consultar, ouvi, com pouco crédito, o blá-blá-blá da moça. E, de repente, uma surpresa: ela pede seu “ageun”, sua comida. O marido da amiga de minha mãe volta correndo com um prato de barro, cheio de pedaços de pizza de calabreza. Estranho. Já vi pomba-giras fumando, tomando champanhe, tomando sangue de bichos. Mas comendo pizza, jamais. E ainda reclamou que não tinha “cocô-de-cabrito”, querendo dizer que faltavam as azeitonas pretas.

Tenho várias histórias dessas guardadas na minha memória. Em outro momento, contarei algumas outras. Decidi contá-las para nos lembrarmos sempre do lado humano, falho, despreparado e insano que está presente nas práticas espirituais e o quanto isso pode influir na ausência de um “filtro” sobre o que dizem essas entidades. Não só nesses casos óbvios, como prescrever Cataflan, comer pizza ou ir à feira. Mas quando ouvimos coisas da boca dessas pessoas e que acreditamos muito, movidos pela mistura da nossa fé com o nosso desejo. É por isso que aprendi que o mais importante não é o que dizem os espíritos, mas o que sentimos em nosso coração e em nossa alma.

Texto do livro:


Monday, April 04, 2011

A NAME, WHAT'S IN A NAME: HOMMUS, KEBAB, MOUSSAKAH, SHALOM

Desde a sua chegada no mundo, lá pelos anos 70, e sua difusão pelo globo a partir da década de oitenta, o crack mostrou que chegou para ficar. Uma droga violentamente "viciante" e capaz de destroçar vidas, famílias, saúde, cérebros. Sou formado há 12 anos e tenho visto a cada ano a situação mais crítica. O crack, que era droga de pobres e excluídos, se espalhou pelas massas, expandiu-se horizontalmente em faixas etárias, conquistou as mulheres.

Quando passo pela Cracolândia, vejo aquelas massas de zumbis amontoadas, trocando coisas na rua, acendendo seus cachimbos, embrulhados em seus lençóis e cobertores. A rua virou casa. Vejo pessoas morrendo, se deteriorando fisicamente e psiquicamente, deteriorando seus valores.

Como naqueles filmes de terror, cada nova cachimbada escraviza, a cada minuto, um novo ser que por sua vez irá escravizar outros e mais outros, fazendo crescer a massa negra do exército de zumbis do crack.

É claro que alguns sobrevivem. Apenas alguns. Como em "Cemitério", "Cemitério Maldito", "A Morte do Demônio" e "Uma noite alucinante", entre outros, alguns conseguem fugir de se tornarem zumbis. Com muita luta, muito esforço e muito sofrimento, alguns conseguem escapar dessa senda maligna, mortal, venenosa, desesperançosa. Esses são verdadeiros heróis, sortudos, abençoados, raros. Porque a grande massa continua crescendo e engolindo bairros, casas, pessoas.

Ando pessimista esses dias. Ando impaciente. Ando descontente. Sei que é passageiro, mas sei que é um passageiro que demora, que custa a passar e se enrosca nas catracas da vida. O tempo é inimigo nessas horas.

Mas por tantas motivações diferentes, profissionais da saúde, igrejas, famílias, ONGs, fundações, repartições, Instituições de todo tipo e um tanto de outros segmentos da sociedade têm se debruçado sobre o problema, à sua moda.

Deles, o mais curioso é a tal da Comunidade Terapêutica. Criadas a partir de um modelo emprestado-copiado norte-americano, as comunidades ideais visavam manter o sujeito por tempos prolongados num modo de vida que reproduzisse a vida "lá fora", sem as drogas. De ilusão também se vive. E graças à intensa proliferação de zumbis e a incapacidade das entidades governamentais de dar conta dessa zumbigênese, as comunidades - ou "crínicas", como são conhecidas - se proliferam feito baratas em casas velhas.

Basta sair do perímetro urbano da cidade rumo a qualquer cidadezinha próxima: Atibaia, Barueri, Cajamar, Dois Córregos, Estrela do Norte, Francisco Morato, Guararema, Hortolândia, Indaiatuba, Juquitiba, Limeira, Mairiporã, Nova Lima, Olaria, Penápolis, Quiririm, Ribeirão Pires, Salto, Tatuí, Umuarama, Vargem Grande Paulista, Xangri-lá, Zumbi. Cada chácara, sítio, terreno, casa de campo, galpão, edícola, mansão. Tudo vira "crínica".

Daí fiquei refletindo sobre os nomes das Comunidades. Logo que me formei, os nomes eram fortes, agudos, evocavam emergência: Esquadrão Vida, Resgate de Vida, Vida Viva. Era um chamado para a atitude, a motivação, a mudança. A maioria eram clínicas fundadas por "dependentes em recuperação", que se tornavam monitores e depois proprietários.

A segunda fase das "crínicas" foi um coisa meio Nova Era. Ano 2000, virada de milênio, o Trem das 7 passsando, mestres ascensionados. E proliferaram os nomes contendo emblemas representando um novo porvir: Recanto da Nova Esperança, Novo Amanhecer, Esperança de Luz, Novo Horizonte. Na verdade nada mudou com a mudança de nomes, mas essas surgiram numa fase em que pessoas da sociedade civil, por intenções humanistas, filantrópicas ou pilantrópicas, além da Igreja Católica, se engajaram em tentar ajudar os pobres dependentes.

Houve um semi-período de nomenclaturas ligadas a coisas da natureza, como Pedra Grande, Rancho da Serra, Serra Dourada, talvez para aproveitar o espaço subaproveitado dos caipiródromos que se trasnformaram em forrós, mas acho que a coisa não vingou.

Mas nos últimos anos, a coisa pegou. Não só a Cracolândia cresceu, como abriu franquias. Hoje é possível encontrar, no mínimo, uma franquia da cracolândia em qualquer bairro, em qualquer canto, de toda a cidade. Cresceram também as igrejas evangélicas de todo o gênero, com diversos nomes e elas passaram a se encarregar do cuidado dos zumbis, espalhando clínicas pelas cidade. O interessante dessas clínicas são os nomes. Uma proliferação de hebraico inculto. Shabat, Xabá, Shalom, El Shaddai, Seth, Elohim, Elohai, Jeovah, Yeshua, Chaim, Adonai, Menasseh.

E fiquei pensando nos próximos nomes que virão. De onde derivarão? Acho que se eu montasse uma clínica dessas, colocaria um nome de Orixás. "Casa de Recuperação Aurora da Oxum" ou "Centro de Tratamento Obreiros de Omolu" ou "Clínica de Tratamento Pai Benedito de Aruanda". Na verdade nunca ouvi falar de um clínica de recuperação que tenha como linha mestra de limpeza e renovação espiritual a liturgia da Umbanda e do Candomblé. O máximo que já soube foi de uma clínica ecumênica, que tinha um altar para os vários credos.

Outro dia estava de plantão no hospital psiquiátrico e soube que um paciente ficou internado na tal "Adonai". Eu e um outro amigo de plantão começamos a viajar nos nomes das clínicas: Hommus, Moussakah, Keftedaki, Agnus Benedicts, El Lychia, Bourguignon. Imagina só: "Casa de Recuperação Manto de Moussakah: alimente o corpo e o espírito". Será que as pessoas irão notar? Acho que não. A moussakah sagrada vai ser alimento para o espírito que sofre, o conforto para a mente e para o estômago. E a religião será substituída por comida. Como na Kabalah, que crê num Deus imanente, que está em tudo ("... e mesmo assim ninguém lhe diz ao menos obrigado...") a Moussakah será o símbolo da harmonia alquímica simbolizada pela batata, a carne moída e a berinjela. Só a gastronomia nos une. Amém.

Sem dúvida, a melhor clínica que poderá existir é a "Clínica Doutor Fofinho". Ambiente acolhedor, aconchegante, boa comida e, infelizmente nenhuma boa bebida.

Não quero criticar as clínicas em si. Estou apenas holofoteando seus nomes engraçados. É a tal da tentativa de vir a ser pop. Achar um nome forte, "cool", que prenda a atenção. E é claro que recorrer a nomes carregados de simbolismo, de mítica podem exercer uma força extra ao atrair seus recuperandos, ou as famílias deles.