Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Sunday, April 17, 2011

O CABOCLO QUE RECEITAVA CATAFLAN A POMBA-GIRA QUE COMIA PIZZA E A OXUM QUE IA NA FEIRA



Quando era pequeno, sentia muito medo das coisas espirituais. Católico de formação, frequentador assíduo e entediado das missas de domingo.

A lembrança mais curiosa que tenho do catolicismo foi ter assistido o casamento dos meus pais na igreja. Acho que minha mãe inventou isso numa atitude de desespero, mas penso que ela se equivocou com o sacramento, pois acharia mais cabível a Extrema Unção do que a consagração do matrimônio propriamente dita. Mas como sempre ouvi dizer que devemos ter muito cuidado com o que pedimos a Deus, talvez tenha sido essa benção que tenha arrastado essa união por mais alguns árduos anos.

Não exatamente pela formação católica, muito mais pelo medo com que esses assuntos eram tratados em minha casa, sentia um pavor com qualque coisa relacionada a esses assuntos de espíritos. Mas, como a vida é paradoxo, lembro de ter sido levado a um centro espírita para tomar uns “passes” quando morreu minha avó.

Por volta dos doze anos, comecei a ler cartas e, apesar da pouca idade, fazia previsões que descabelavam minhas consulentes. Apesar do proibicionismo vigente em minha casa, consegui, às escondidas, manter o hábito da cartomancia e, por volta dos vinte anos, levado pelo desespero da vida em decadência, bati pela primeira vez, na porta de um terreiro de umbanda.

Frequentei centros de umbanda e candomblé por vários anos. Fiz cursos, participei de festas. Gosto e respeito muito. Parei de frequentá-los porque percebi que, apesar da crença e da beleza do culto, não suporto a vaidade dos líderes e, sobretudo, a desonestidade de muitos deles. Cheguei a ficar ateu por quase cinco anos, mas a espiritualidade voltou a bater em minha porta e resolvi deixá-la entrar em minha vida. Ainda estamos em fase de “namoro”…um intimidade estranha, uma certa formalidade, como aqueles casais que foram amantes longos anos, se afastam e se reencontram tempos após.

Uma coisa que sempre me divertiu muito nesses cultos é a incorporação. Acho interessante a forma com que os espíritos “baixam”, as diversas apresentações das correntes ou linhas, a mudança da voz, a forma de andar, o beber sem ficar bêbado. Uma vez vi um cara ficar bêbado tomando a água que o espírito lhe dava.

Mas o que realmente chamo de divertido e é o assunto que me proponho a tratar nesse texto, são acontecimentos hilários que presenciei enquanto frequentador. Com todo respeito às entidades, pois sei que não eram elas que diziam ou faziam tais absurdos, mas a porção desastrosamente consciente dos médiuns incorporados.

Certa vez, no centro que frequentava, chegaram os caboclos . Era bem bonito. Havia uma mulher muito bonita que frequentava o centro. Era elegante, charmosa. Sua roupa branca impecável. Suas incorporações deslumbrantes. Sempre tive uma ligação especial com ela e com seus “guias”. Ela recebia uma Cabocla Jurema que dava passes nas pessoas com folhas de samambaia. O único problema era quando ela abria a boca no lugar da Cabocla. Certa vez, um jovem se consultava com ela. Eu estava do lado, fazendo as traduções “caboclês-português”. O jovem estava com dor nas costas e ela não se fez de rogada: “Zi fio vai na farmácia e toma catafran , mas zi fio não esquece de fazer comedor antes pra não doê o estômago”. Tive vontade de rir e foi o que fiz.

Tinha uma amiga que contratou uma faxineira que se dizia mãe-de-santo. Passado algum tempo, a arrumação da casa dela ficou em segundo plano e a faxineira dedicava seu tempo de trabalho incorporando seus “guias” e fazendo consultas na casa da minha amiga. Certa vez ela recebeu Oxum . Deu os gritos e os passos característicos , rodopiou no meio dos móveis da sala. Depois, ainda em transe, despediu-se das pessoas, catou a sacola, abriu a porta e saiu pela rua, cambaleando e gritando. Preocupados, saímos todos atrás dela. Ela andava rápido, obstinada. Atravessou uma avenida movimentada e entrou na rua da feira. Dirigiu-se a uma barraca de ervas, pediu algumas folhas, saiu sem pagar. Antes que a dona da barraca se irritasse com a santa, tratei de pegar pelas encomendas. Rapidamente retornou à casa, explicou à minha amiga como fazer o tal banho de “descarrego”e partiu, deixando a faxineira desmaiada na sala.

Minha mãe tinha uma amiga que se dizia mãe-de-santo. Uma vez me convidou pra visitá-la. Quando cheguei na casa dela, percebi uma movimentação estranha. Estavam preparando uma sessão espírita. Rapidamente ela incorporou a pomba-gira, muito respeitada naquela casa. Foi obrigado a me consultar, ouvi, com pouco crédito, o blá-blá-blá da moça. E, de repente, uma surpresa: ela pede seu “ageun”, sua comida. O marido da amiga de minha mãe volta correndo com um prato de barro, cheio de pedaços de pizza de calabreza. Estranho. Já vi pomba-giras fumando, tomando champanhe, tomando sangue de bichos. Mas comendo pizza, jamais. E ainda reclamou que não tinha “cocô-de-cabrito”, querendo dizer que faltavam as azeitonas pretas.

Tenho várias histórias dessas guardadas na minha memória. Em outro momento, contarei algumas outras. Decidi contá-las para nos lembrarmos sempre do lado humano, falho, despreparado e insano que está presente nas práticas espirituais e o quanto isso pode influir na ausência de um “filtro” sobre o que dizem essas entidades. Não só nesses casos óbvios, como prescrever Cataflan, comer pizza ou ir à feira. Mas quando ouvimos coisas da boca dessas pessoas e que acreditamos muito, movidos pela mistura da nossa fé com o nosso desejo. É por isso que aprendi que o mais importante não é o que dizem os espíritos, mas o que sentimos em nosso coração e em nossa alma.

Texto do livro:


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