Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Monday, July 25, 2011

SANTA BUENA O MALA MUERTE

Tenho falado muito sobre a vida nesse blog, mas a morte tem sido um assunto constante. Vão pensar que sou mortuário. Já fui, não sou mais. É que a morte é a continuidade natural do rio da vida; é o encontro da vida com o mar da eternidade. A vida segue como um rio: segue mansa, segue rebelde, pode ser represada, pode empoçar, pode ser mansa e caudalosa, pode ser rebelde; reta, incólume, sinuosa, tortuosa, brava, acidentada, mas segue sempre, não para nunca.


E, como todos os rios seguem de encontro ao mar, a vida segue de encontro à morte. Do mesmo modo que o mar, cheio de vida em seu interior, a morte não é finitude. A morte é passagem, transformação, metáfora da alquimia maior da vida. Fechamos os olhos para uma vida e nos abrimos para um mar de possibilidades. Tem gente que vira pó; tem quem se encontre com Deus ou com musas ou ninfas ou 40 mil odaliscas; há quem vá para o inferno, tem aqueles que escorregam pelo umbral. Tem quem reencarne num corpo de gente, de bicho, de planta. E ainda quem vá para outro planeta. É nesse mar de possibilidades que a vida se encerra, não exatamente como um fim, mas como o fim de um ciclo, como a cortina do espetáculo que se fecha, temporariamente.

Também estou falando de morte porque ela tem aparecido pelo meu caminho com certa frequência. Não, ela não tem me convidado para passear com ela. Se ela me oferecer carona, provavelmente será equivocada. Se ela oferecer e eu aceitar, mais equivocada ainda. Tenho visto pessoas morrerem. Vi algumas pessoas queridas, vi outras com as quais não possuía relação. Vi pessoas queridas de pessoas queridas irem embora, vi outras quase partirem, vejo algumas acenando suas despedidas. E, embora não a conhecesse pessoalmente, perdi essa semana uma das minhas cantoras prediletas, Amy. E eu não cheguei a ver um show dela. Desde que conheci a sua voz e passei a acompanhar suas trajetórias – a artística e a toxicômana – vivia dizendo que queria ver um show dela logo, porque ela não passaria dos 30. Também queria ver o show de longe, só pra ouvir a sua voz, com dignidade e a salvo de levar cuspes, socos ou garrafadas da musa-trash. E a profecia se cumpriu: Amy me deixou na mão.

Mesmo quando a morte é esperada, até quando é desejada, como forma de alivio para o sofrimento de alguém, não consigo gostar muito dela. Ou, melhor dizendo, gosto da morte, não do que ela faz. Gosto da foice, do capuz, das caveiras. Curto como diversas civilizações lidam de uma forma mais “amorosa” com a morte, como os orientais, os mexicanos, os hindus. Mas, de pertinho, na pele, com o próprio sangue, não sei dizer. Porque já faz muito tempo que a Santa Muerte carregou meus avós para algum desses lugares inacessíveis aos pobres mortais. Sei bem o quanto sofri e chorei por essas perdas e não sei como será quando tiver que vivenciar isso novamente.

Quando era criança, assisti a um filme no SuperCine que contava a história de um menino que viveu até os cinco anos de idade numa instituição para deficientes mentais, até descobrirem que ele era apenas surdo, sendo devolvido para casa. Nesse momento se instala uma crise com o casal, pela dificuldade em lidar com o garoto. A única pessoa que conseguia dar um carinho despretensioso era seu avô, um humilde feirante, cheio de amor e paciência. É ele quem ensina ao menino a fazer com a linguagem de sinais, o símbolo da morte: as duas mãos espalmadas, uma de frente pra outra, posicionando-as na horizontal. E hoje estou muito feliz, porque após anos tentando, consegui lembrar o nome do filme: “And your name is Jonah”. É um filme de 1979. É lógico que esse filme me marcou muito, não apenas pela beleza, nem somente pela história trágica do menino, mas sim porque ele trata, de uma forma delicada, da perda de pessoas amadas.

Certa vez fui ao Cemitério do Araçá, acompanhando uma amiga que quis visitar o túmulo de sua finada tia. Sempre gostei de visitar cemitérios: aquela tranquilidade, aqueles túmulos maravilhosos, com suas estátuas de bronze, suas lápides memoráveis e seus mármores portentosos, muito embora seja meio avesso à idéia dos enterros e dos cemitérios. Acho que todo mundo deveria ser cremado. Assim eu desejo que façam comigo. E nem quero que guardem cinzas. Quero que joguem tudo numa samambaia, numa cachoeira ou no mar. Mas fiquei abismado com o estado deplorável daquele cemitério: a capela deteriorada, abandonada. As alamedas e calçadas quebradas; alguns túmulos dilapidados, depredados, descuidados. Pra que serve enterrar em túmulos enormes para depois não cuidar deles. Apesar de achar inúteis, penso que deveriam estar bem cuidados, uma vez que se tem um.

Embora não ache que “meus” mortos estejam por lá, resolvi aproveitar a visita para visitar seus túmulos. Fui até à administração do cemitério para procurar o endereço mortuário. Nada. Meus tios, que deveriam estar enterrados lá, não foram encontrados. Tentei escrever seus nomes de modo incorreto. Nada também. E minha avó? Lembro que ela ocupava esse mesmo túmulo dos meus tios, emprestado, porque minha família não tinha catacumba “privé”. Lembro que alguém, não me lembro quem, ficou incumbido de levar seus ossinhos para um cemitério bem pobrezinho, beeeeemmmm longe. Nunca fiz esse tipo de visita. Nunca assisti a um enterro, nunca levei flores em tumulo de ninguém. Deve ser por realmente não acreditar que eles estejam lá. Porque os “meus” mortos, estão vivos, dentro do meu coração.

Porque a morte é só isso: passagem. Não que seja uma passagem simples: é uma passagem cara. Sofrida, dolorida, incompreendida. E não tem jeito: é uma perda em nossa vida carnal. Sobretudo porque somos carnais. Se as pessoas choram quando se despedem em aeroportos; choram de saudades em finais de semana prolongados; quando os filhos vão para a escola pela primeira vez; nos casamentos; nos finais de férias, por que não haveriam de chorar nessa longa viagem? Detesto os pseudo-equilibrados que apregoam a ditadura anti-luto. Morte é perda, perda é luto. Luto é choro. Chore, se descabele, se entristeça. As lágrimas são as águas do rio da vida lavando nossa tristeza e cicatrizando nossas feridas. E o luto leva tempo para se “enxugar”. E um tempo particular que, com certeza, não dura apenas sete dias.

Que a Santa Muerte dos mexicanos, que a Nossa Senhora da Boa Morte dos Baianos, que a Kali dos Indianos e a Perséfone dos Gregos e dos junguianos abençoem, arrefeçam, tranquilizem e apaziguem as mortes, os mortos e seus viúvos, órfãos e abandonados em geral.

Friday, July 22, 2011

VENTOS DE IANSÃ


“Iansã comanda os ventos,

A força dos elementos

Na ponta do seu florim

É uma menina bonita

Quando o céu se precipita”

(As Ayabás, Caetano Veloso&Gilberto Gil)

Tenho pensado muito em Iansã ultimamente. Ela é a senhora dos raios, das faíscas, dos ventos, das tempestades. É ela, na mitologia das religiões afro-brasileiras, quem move as marés. No sincretismo católico ela é Santa Bárbara.

As pessoas identificadas como filhas de Iansã carregam suas características: guerreiras, impulsivas, impetuosas, teimosas, rebeldes, libertárias, fogosas, extravagantes. Podem, no aspecto negativo, serem briguentas, autoritárias, violentas. Mas o mais importante de tudo que elas carregam é essa força ígnea, esse calor, essa atitude cheia de energia perante a vida.

Eu amo e respeito todos os Orixás da Umbanda e do Candomblé. A cada dia que passa, mais eu os conheço, mais eu respeito, mais eu aprendo. Mas, com todo o respeito a todos eles, Iansã, ao lado de Xangô e Oxum, são os Orixás pelos quais sustento a ligação mais forte.

Foram eles, na minha modesta e pequenina sabedoria, os primeiros fios condutores a me apresentarem essa religião, essa forma de cultuar a Deus, que hoje tanto me completa. Para mim, a Umbanda é hoje parte integrante do meu viver. É o seio que alimenta minha espiritualidade; é a cama fofa onde deito meus pensamentos; é o pai severo que me ensina o modo certo de fazer as coisas; o colo da mãe carinhosa para os dias em que busco carinho e compreensão.

Certa vez me disseram que eu era filho de Iansã. Achei estranho ser filho dela com meu temperamento pacato, conciliador. Logo depois me tornei mais impetuoso, mais decidido e acreditei no que me disseram. Numa outra ocasião, em uma consulta espiritual, me disseram que não era filho dela, mas que ela olhava por mim, disso não havia dúvida.

E compreendendo um pouco mais sobre essas coisas, fui conhecendo a função dos Odus. Odus, no candomblé, são “energias que rondam” a nossa vida, que podem mudar de tempos em tempos, influenciando nossa existência, nosso caminho, nossas escolhas. Quando nascemos, existe um Odu, uma força principal que rege o momento em que nascemos e que irá influenciar por demais a nossa vida; e isso é confundido várias vezes com o Orixá da pessoa, ou o “santo de cabeça”. Da mesma forma que no momento do nascimentos, vários Odus irão influenciar os acontecimentos em nossas vidas, da mesma forma que somos influenciados, do ponto de vista da psicologia arquetípica, pelos mitos.

Desse modo, mesmo que eu seja filho de Xangô, posso estar, num determinado momento da vida, sob os odus de um outro Orixá, proferindo mudanças em meu caminho.

Talvez eu até passe pela influência dos odus de outros Orixás, e isso pode ter passado despercebido. Mas quando os ventos de Iansã sopram em meu caminho, esses eu já aprendi a compreender. É hora de mudança. É hora de botar energia de movimento. É hora de botar o pé na estrada.

E toda vez que isso acontece, provoco labaredas pelo caminho. Já quebrei vidraças, já arrebentei porteiras, xinguei palavrões cabeludos e saltei de embarcações em movimento. Mas nesse momento, ela não vem com essa violência. Talvez porque não haja mais necessidade de fazer esse barulho todo com o intuito de me fazer acordar. Talvez porque sejam uma Iansã mais velha, analisada ou adoçada pelos temperos de Iemanjá. Não tenho dúvidas: é ela que reina; mas talvez esteja reinando numa cabeça mais esclarecida hoje.

Devem ser os ares de Paris.

Tuesday, July 19, 2011

NOITES INTEIRAS E LONGAS EM PARIS



Na Inglaterra e em todo o Commonwealth, brinda-se dizendo “Vida longa à Rainha”, ou ao Rei, ou ao que o valha. É de lá que vem também a famosa frase “God save the Queen”. Eu gosto muito da Inglaterra. Conheço pouco; só fui duas vezes a Londres; gostaria de poder ter ido mais vezes. Mas não consigo deixar de ir pra Paris.

Meu negócio mesmo é Paris. Como já disse, eu ainda quero viver em New York, mas quero morrer em Paris. Já fiz cenas trágicas da minha morte com uma overdose de heroína enquanto me atiro do alto da Torre Eiffel, mas o que quero mesmo é dar meu último suspiro no outono, sentadinho na minha bergère confortabilíssima, aquecido por uma leve brasa da lareira e meu cobertor de cashmere, com as janelas abertas da pequena varanda, olhando as folhas amarelas caindo das árvores do Jardim de Luxemburgo. E, de preferência ao lado do meu amor.

Não tenho pressa nessa cena. Quero partir lúcido para poder ver meu sonho se realizando. Mas enquanto isso não chega, ainda quero desfrutar com saúde, bom humor e muita champagne essa cidade que tanto amo. Quero poder falar francês melhor, escrever e publicar livros em francês e levar muitos amigos para lá, mostrar a cidade, respirar aquele ar cujo cheiro não se acha em outro lugar.

E cada vez que eu vejo um belo filme que retrata a minha “Cidade Maravilhosa”, fico cheio de desejo por Paris. Tenho vontade de catar o primeiro avião e esquecer da vida (prática). Paris. Paris, eu te amo. O fabuloso destino de Amélie Poulain. A viagem do balão vermelho. Arsène Lupin. Parabéns, Woodie Allen. Você venceu. Não vi a sua neurose borbulhante contaminando o filme, nem mesmo quando Gil oferece Valium para a suicida Fitzgerald.

Mesmo que a trama do filme fosse deplorável, o que não é, a fotografia de Paris reina absoluta. Obrigado, Woodie, por ter mantido o respeitável silêncio cinematográfico e não ter contaminado a doce fotografia de Paris com seu barulho. A trilha sonora estava ótima, mas não perfeita. É pra não esquecer que era um filme quase francês feito por um americano. Podia ter tido um pouco de Piaf, Gainsbourg, Josephine Baker, Dalida, Aznavour, mas tudo bem.

Além da beleza de Paris, acredito que o “aprisionamento” afetivo pelo filme ocorra porque, salvo raríssimas exceções – até agora só ouvi uma pessoa dizer que não gostou do filme- qualquer pessoa já quis fugir alguma vez de seu tempo e habitar o passado. Em meus longos sofridos passados anos, eu já quis isso. Na verdade queria fugir para o passado, para o futuro, e até para outro planeta. Qualquer tempo ou lugar diferente daquela vida miserável. E quando pensava em fugir para o passado, imaginava migrar para a década de cinquenta ou sessenta. Adorava aqueles carros todos. Aero Willys, Studebaker, Cadillacs rabo-de-peixe, lambretas. Elvis, Nat King Cole, Paul Anka, Neil Sedaka. A música, os filmes, as imagens me transportavam para uma realidade afável, romântica. Todo mundo já quis fugir um dia. Eu quis, por muitos anos, o tempo todo.

Como Gil Pender e todos aqueles artistas que ele encontra no filme, eu já quis fugir para Paris. Nas minhas brincadeiras mentais de menino, eu saía de casa aos dezenove anos para morar em Paris. Hoje eu não quero mais fugir; não totalmente e sim parcialmente. Hoje Paris é uma fuga consciente, um oásis no qual me reabasteço de bonheur, de joie de vivre, de amour. É meu paraíso na Terra, a confirmação da minha certeza íntima de que a Felicidade existe, está em todos os lugares, mas cuja nascente está lá. No filme de Woodie Allen, é à meia-noite que as coisas se transformam. Como em “Sonhos de uma noite de verão”, de Shakespeare; como na Umbanda; como na Alta Magia. É à meia-noite que as portas para o sonho, para os mundos invisíveis, para a imaginação, para o império dos sentidos; todas se abrem. Era à meia-noite que começava a minha insônia na adolescência e eu me transportava para os “Anos Dourados” pelos 105,9 da Rádio Musical FM, ouvindo músicas, gravando e regravando em meu “duplo deck”. Era à meia-noite que minha imaginação me transportava para as ruas de Paris e por lá eu ficava.

Ninguém conhece Paris melhor do que eu. E não é pelo fato de eu já ter ido tantas vezes. E até acredito que existam milhares de pessoas que possam ter morado lá, coisa que eu não fiz, ou ter viajado para lá mais vezes do que eu, ou ter passado tempos muito maiores que os meus. É bem provável. Mas essa Paris da minha imaginação; essa para onde eu já fui tantas vezes; essa onde eu morei por tantos anos; a Paris na qual eu chegava em poucos minutos, abrindo a portinha da minha fértil mente; essa, ninguém sabe andar por ela como eu.

Claro, tem gente que não gosta de Paris. Tem gente que gosta mais de Londres, Tóquio, Massachusetts, Praga, Estocolmo, Antuérpia, Baraqueçaba, Uluwatu, Amsterdam, Bogotá. Sei lá. Respeito as cidades prediletas de quem quer que seja. Respeito, apenas.

O jeito é torcer para reativarem o Concorde; para inventarem o portão interestelar para sermos transportados em segundos para Paris. E tomara que o pouso seja na mesa do Ritz, com o garçom esperando com uma resplandecente taça de champagne. E enquanto não chega esse dia, vou em frente, comendo quiches, brioches, croques, fromages e crepes. Um Paris State of Mind.

Sunday, July 03, 2011

I BEG YOUR PARDON, I’VE NEVER PROMISED YOU A ROSE GARDEN


“So smile for a while

And let's be jolly

Love shouldn't be so melancholy

come along and share the good times

While we can

I beg your pardon

I never promised you a rose garden

Along with the sunshine

There's gotta be a little rain sometime”

(Rose Garden, Johnny Mathis)

“Você bem sabe


que eu não lhe prometi um mar de rosas


Nem sempre o sol brilha


Também há dias em que a chuva cai”

(Mar de Rosas, The Fevers)

Não, a vida não é um mar de rosas. A vida é um mar, com seus balanços, sua maresia, sua ressaca, seus tsunamis, seu vai-e-vem, sua instabilidade. E o mar da vida não se movimenta sozinho. Depende da Lua, dos ventos, de Iansã e seja lá que outra energia para fazer marés, ondas, maremotos. E depende do Sol, para aquecer suas águas, dar vida a algumas vidas. Tal e qual o mar, a vida não se processa sozinha. Dependemos de coisas e pessoas para que ela aconteça.

E, como o mar, a vida é incontrolável. Temos expectativas, esperanças, sonhos, desejos, projetos e tudo isso pode dar errado. Ensaiamos um feriado na praia, pegar um bronze, tomar água de coco, comer biscoito Globo e Guaraviton em Ipanema e pode começar a chover do nada.

Podemos praguejar, blasfemar, berrar revoltas aos céus, a Deus; oferecer ovos para Santa Clara, fazer cruzes de sal no chão e promessas às Nossas Senhoras todas, mas se tiver que chover, choverá. E se a chuva for embora ou parar, será um sinal de que nossas preces foram ouvidas, ou isso é apenas um lívido alivio para nossa ansiedade, porque a chuva foi embora porque iria mesmo, independente das intervenções celestes?

Hoje me lembrei da história de um colega de cursinho que ficou cego num acidente e ainda assim desejava ser médico. Gravava as aulas em fita cassete, treinou para escrever em cima de uma régua para um impiedoso vestibular que o obrigou a fazer uma prova escrita e, ao cabo de alguns anos de cursinho, conseguiu entrar na faculdade. Cursou os seis anos com liminares judiciais e, ao terminar, dizem que o Conselho Regional de Medicina não aceitou sua inscrição para exercer a medicina e ele se matou.

Quando contei essa história a um amigo, ele perguntou: “Mas ele não ia poder exercer a medicina”. Ele sabia das suas limitações e queria continuar trabalhando na mesma área que já estudava antes de entrar na faculdade: quiropraxia e acupuntura. Ele sabia que não seria um mar de rosas, mas tinha um sonho, uma missão, uma obstinação. E quase chegou lá. Depois meu amigo disse que essa história não era verdadeira. Mandei ele tomar naquele lugar.

Nesse final de semana, uma amiga veio a São Paulo para um congresso. Resolveu ficar num hotel junto com seus colegas de profissão mas, quando fui leva-la ao hotel, estranhei o endereço e desconfiei que não fosse um lugar decente para hospedagem. Dito e feito. O hotel ficava a cinco quilômetros do evento. Minha casa a dez. Não bastasse isso, o hotel “Option”, antigo “Flor de Santana” era e ainda é um hotel de “viração”; ou seja, um motel-drogódromo disfarçado de hotel, tão caro quanto um hotel do tipo Formule 1 ou Íbis. Bad, bad option. Nem preciso dizer que arrastei minha amiga e seus colegas para minha casa, até que achassem um hotel decente para se hospedarem. Tem um monte de coisa ultra-blogáveis nesse acontecimento, mas deixemos tudo isso para outras postagens.

E lá fomos nós, recheando o carro: eu, quatro mulheres, cinco malas, comidas, blusas de lã, cachecóis e a imagem do São Jorge Guerreiro de quase um metro de altura que havia comprado algumas horas antes. Chegamos em casa sãos e salvos por São Jorge.

Tem um lado da vida, que é o lado como nos relacionamos com o mar, que diz respeito às escolhas. Escolhemos ir à praia, escolhemos a possibilidade de tomarmos sol. Escolhemos tomar um banho de mar. Mas a escolha, o relacional, são sempre circunstanciais. Podemos escolher tudo isso ou nada disso, mas o mar, como a vida, nem sempre comunga nossas escolhas. Podemos ficar presos no trânsito da estrada, pode chover, pode ter cocô na praia.

Quando chegamos em casa, minha amiga quis desembrulhar o São Jorge. Disse que era pra ver a “carinha” dele. Tiramos todo o papel-bolha e resolvi deixar ele reinando, soberano, em cima da mesa da sala de jantar. Estou olhando para ele agora. Pergunto para ele, que é o santo das estradas, dos caminhos da vida, qual rumo devo tomar. Eu não sei de nada. Ele, ao contrário, sabe bem mais que eu dos caminhos da vida.

Por um momento, fico estático. Daí me lembro de uma cântico da aula de religião do colégio de freiras: “Perdido, confuso, vazio, sozinho na estrada, tentando encontrar um caminho que seja o meu, não importa se é duro, terei que buscar”. E o coro responde: “Caminheiro, você sabe, não existe caminho; passo a passo, pouco a pouco e o caminho se faz.”

Pronto. São Jorge respondeu. Tem horas que a gente tem certeza do caminho a seguir. E mesmo assim, essa certeza pode nos levar e encruzilhadas e bifurcações, dúvidas. E mesmo quando não fazemos idéia do caminho a seguir, não podemos ficar parado. Devemos seguir em frente. A vida, como o mar, como o caminho, não para nunca.

E me lembrei das conversas mentais que tive com Nietszche, ao terminar minha tese de mestrado: “Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar, para atravessar o rio da vida - ninguém, exceto tu, só tu.
Existem, por certo, atalhos sem números, e pontes, e semideuses que se oferecerão para levar-te além do rio; mas isso te custaria a tua própria pessoa; tu te hipotecarias e te perderias.
Existe no mundo um único caminho por onde só tu podes passar.
Onde leva? Não perguntes, segue-o!”

Eu estou seguindo, pedras pra tropeçar, grama para comer, areia para carcomer os vãos dos dedos dos pés. Tudo pode fazer parte do caminho. Pra tudo se dá um jeito. Só não podemos ficar parados. Como dizia uma antiga terapeuta: “Prá tudo se dá um jeito; só não tem mais jeito quando a tampa (do caixão) fecha.”