Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Tuesday, June 05, 2012

ROUBO


Escrevi esse texto em 2004, após ter passado um sério problema em minha vida. Hoje, relendo o texto, depois de "muita água por baixo da ponte", mas vendo tanta gente sendo roubada por aí, das mais diversas formas, resolvi postar de novo, como presente, pedindo para todos que continuem acreditando na vida, porque ela é sim muito bela, mesmo com suas mazelas. 

Certa vez um professor de cursinho dizia aos seus alunos – e eu estava entre eles – que havia sido assaltado, seu carro roubado, sua namorada lhe trocado por outro... dizia que na vida, podiam tirar tudo de você, a única coisa que ninguém podia roubar era o que você tinha na cabeça, seu conhecimento,sua cultura. Em  partes concordo com ele, pois há certos atributos na vida, como estes que ele citou, tesouros inestimáveis que na maioria das vezes são perenes e perfazem a única riqueza que nos resta em momentos difíceis. Essa  riqueza, associada à vontade de vencer os obstáculos, a um alerta constante frente às adversidades, foram com certeza o que me mantiveram vivo por muitos anos.

Mas, se digo que concordo em partes com essa afirmativa desse meu professor é porque, lidando nesses anos com o difícil  universo da psiquiatria, da doença mental e do jogo das famílias, pude constatar que às vezes o conhecimento, a cultura e até mesmo a vontade de viver também podem ser roubáveis e, de repente, não resta nada que mantenha a pessoa viva.

Nos últimos anos, muitas transformações ocorreram na minha vida e mesmo as dificuldades que passei, como fome, trabalhar de madrugada e passar o dia inteiro na faculdade de medicina, andar horas a pé por não ter dinheiro para pagar o ônibus, sair de um apartamento de luxo em que morava com minha família para morar num casebre de fundos com goteiras e ratos e  muitas outras... e ainda assim consigo considerar tudo isso como passos de um caminho, como espinhos de uma rosa....é claro que na hora eu não pensava assim, e por várias vezes cheguei a pensar em desistir... da vida....mas hoje ,que vejo tudo superado e vejo muitas portas e oportunidades se abrindo, consigo considerá-las como pedras, obstáculos que transpus.

Não bastasse eu ter superado tantos obstáculos, eu ainda consegui, após muitos anos – praticamente minha vida inteira – eu consegui abrir uma porta que, nos tempos difíceis, nem acreditava existir: a porta da felicidade...eu nem sei exatamente dizer quando foi que eu saí de uma porta e passei por essa, mas tem certas coisas que acontecem na vida da gente e só sabemos o que são quando elas chegam. Então, mesmo ainda com muitos problemas, com muitas dificuldades, eu  pude constatar que um dia a felicidade chegou em minha vida e, mesmo que ela vá embora um dia, eu estarei contente porque eu a conheci. Só  posso comparar isso àquelas pessoas estarrecidas e perplexas quando têm aquelas visões ou aparições de santos e entidades: pode ter sido uma experiência única, mas capaz de mudar e reluzir por toda uma vida.... essa é a minha ilha do tesouro...eu encontrei, e mesmo que um dia ou mesmo que em alguns dias coisas estapafúrdias ocorram, não lamentarei, não me curvarei, porque a felicidade invadiu meu  intimo, meu espírito, minha essência e esse bem, esse tesouro não há quem consiga roubar. A  felicidade, se vista como estado de espírito, é efêmero e pode ir embora, pode passar ou pode, nesse mundo repleto de ladrões capazes de roubar absolutamente qualquer coisa, de fato pode ser roubado, mudado, esvaído. Mas  aqueles que souberem enxergar a felicidade como um presente que imprime no indivíduo uma marca perene, sutil, impalpável, quem de fato conseguir entender isso, saberá do que estou falando.

Recentemente  fui roubado mais uma vez. e, como muitas das outras vezes, não foi apenas um roubo físico, material;foi um roubo em que tomar para si algo físico e que não pertence ao ladrão tem impressa  a mensagem de desrespeito, amoralidade, agressão e ódio. Talvez todo roubo tenha em si alguma parcela desse código, pois apossar-se  de algo não-próprio coloca de fato o ladrão numa posição de desrespeitador.

Ao ladrão, fica a sensação de vitória, de vingança, de júbilo e regozijo. A  mim, ficou de inicio a sensação de perplexidade e impotência, comum a quase todos os “roubados”. Não havia uma arma apontada para minha cabeça, mas o fato de ter sido roubado por uma criatura conhecida, com quem reparti por alguns anos vida, intimidade,lutas, conquistas e pela qualidade do objeto roubado  que tinha impresso um marco de dificuldades vencidas, de paz, agravaram a sensação de dor e de morte que se abateram sobre mim. Digo  que essa foi a sensação inicial e confesso que parte dela perdura em minha mente e em meu coração. Mas  quando coloquei esse evento – que na ocasião parecia um imenso meteoro – na linha da minha vida; pude constatar que não se tratava de um meteoro ou do anúncio do final dos tempos...era apenas um ponto. Um  ponto negro, concordo, mas nada além de um ponto. Voltei  a olhar todos os pontos pelos quais passei na estrada da minha vida e quantos deles pareceram um meteoro e hoje nem mais pontos são, porque se apagaram com o tempo.

Foi  então que pensei na criatura, e conclui que na linha de sua vida, todos os seus pontos são assim: não há uma vida, há uma carreira criminosa cujos pontos – múltiplos – consistem em subtrair do outro e tomar para si como a única forma de obter a superação do estado anterior. Talvez  a tal criatura se veja invadida por um banho de riso sardônico que possa ser confundido com felicidade. Algo  parecido com o  que chamamos na psiquiatria “sensation seeking”, que no caso dessa criatura denota única e exclusivamente uma satisfação corrosiva de praticar o mal associado a um reflexo neurológico primitivo do selvagem ao conseguir liquidar a caça, não pela sensação de vitória, mas por atestar a garantia de que terá alimento nos próximos dias, que terá uma caverna para se esconder nos dias frios. E  pude então perceber que essa criatura jamais chegará a experimentar qualquer migalha do que chamo de felicidade. Um  ser vivo que nasceu do mal e cresceu nele, recebendo a varas de marmelo, correntes e cintas de couro a informação de que só dessa forma se sobrevive,caçando, arrancando pedaços e saindo correndo, engolindo rápido. Uma  criatura como essa não pode ter em si nenhum registro saudável do que se chama de felicidade. A  muitos olhos pode parecer que essa criatura seja regida pelo tal “principio do prazer”, mas eu acho que o principio que a rege é o da “dura realidade”  de uma sobrevivência selvagem, primitiva que nunca, nunca encontrará descanso.

Pode parecer que esteja dadivoso, clemente, indulgente com essa criatura. Não, não se enganem. Trata -se  apenas da constatação da natureza feroz de um ser inferior que poderá subir muitos degraus na escada financeira, corroendo como ácido os bolsos, as carteiras e os lares, mas de fato não haverá felicidade porque seu comportamento é como o das bactérias e outros seres inferiores quaisquer, comportamento esse que é carregado por gerações e gerações de seus bio-geradores, como a história da sua colônia (família jamais) tem demonstrado.

Não, não há como ter pena dessa criatura. Trata -se de um monstro com características “orobóricas” cuja única intersecção com o mundo externo é sugar do outro para não ter que comer das próprias fezes enquanto engole o próprio rabo.

E  a criatura já teve, pelas minhas mãos mesmo, e pelas mãos de outros, diversas chances de aprender uma nova programação de atitudes e conceitos, mas sem qualquer sucesso. E  isso jamais mudará. É  provável que um dia ela leia essa mensagem, mas é muito mais provável que ela entenda muito pouco do que concerne à profundidade desses conceitos. Talvez  ela consiga fazer vibrar alguma minúscula onda cerebral ao ler palavras como “roubo”, “ladrão”, “desrespeito”, não o suficiente para acometer-se de qualquer arrependimento,mas talvez o suficiente para excitar-se e desejar mais.

Portanto,finalizo essa mensagem com uma frase simples, nada metafórica, bem concreta, dirigida a essa criatura sem paz de espírito, cheia de requintes de esperteza a simularem uma certa inteligência, delinqüente, usurpadora, vampira: você pode ter roubado muitas coisas de mim, mas eu possuo algo que você sequer terá a sensação: eu sou feliz.

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