“ESSES DENTISTAS SÃO TARADOS”
Não eu não penso isso. Já fui “tarado” por
uma enfermeira que mandou avisar no conforto médico que um paciente me esperava
e, ao entrar na sala escura do pronto-socorro, ela veio que veio. Também já fui
“tarado” por um médico que ficou alisando meu pé no pós-operatório de uma
cirurgia de unha encravada. Mas por dentista, nunca. Nem dentista, nem
dentisto. Foi minha amiga, psicóloga, exorta pelas mirações de um quentão, em
plena festa de São João, que proferiu a pataquada: “Esses dentistas são todos
uns tarados!”. Acho que ela queria dizer que eles são perversos. E a
perversidade, segundo ela, estava na insistência que eles têm em querer
conversar com seus pacientes impossibilitados de falar enquanto são
“broqueados”, “sugados” ou “anestesiados”. Realmente é desconcertante. Deitado
na cadeira, luz quase estroboscópica acesa na cara, pensamento atento na mão
certa que se deve levantar para pedir ajuda, guardanapo em punho, motorzinho
comendo solto, varrendo cáries e amálgamas, sugador acoplado, jatos de água
lambendo os óculos meus, da dentista, da assistente. No meio dessa confusão,
ela pergunta: “Você sabe se esse dente tem canal?” Essa é fácil. Basta fazer ou
sim, ou não ou sacodir os ombros. Daí ela se anima: “E aí, que fez de bom no
final de semana?” Puta que pariu. O pior é que a gente se vê com a obrigação de
responder, e tenta falar, mesmo com a parafernália metida na boca. E, como
disse a minha amiga, “o pior é que eles entendem tudo o que a gente fala.” Uma
outra amiga dentista, ainda por cima minha dentista, trouxe palavras
conciliadoras: “Vai ver que ele quer distrair a pessoa, ajudar a relaxar...” Eu
sou testemunha que ela não fica me torturando com perguntas difíceis de
responder. Até porque eu não fico muito tempo acordado na cadeira, que tem um
efeito imediato na minha melatonina endógena. Mais que a escuridão, os sons da
natureza ou frontal, a cadeira do dentista ativa em fração de segundos a minha
narcolepsia. Será o barulho? Será o estresse? Já me peguei com as mãos suadas e
uma certa tensão enquanto aguardo. Pânico? Nem de longe. Negócio bom é dormir
mesmo.
E fiquei circulando mentalmente, enquanto
conversava, pelos dentistas da minha existência. O primeiro, um senhor de
meia-idade bruto, que enfiava aquela mão larga e dedos grossos na boca da gente
e não abria a boca. A ele agradeço o condicionamento de quebrar os dentes em
balas e pirulitos, após a explicação que era melhor morder as balas do que
ficar chupando, deixando o açúcar o menor tempo possível na boca. O segundo foi
o “dentista dos aparelhos”. Fez cirurgia, colou brackets, apertou ferrinhos.
Quase dois anos indo semanalmente, esperando horas para ser atendido, lendo
Revistas Manchete com dois anos de atraso. Até o dia em que levei uma bolada na
cara no jogo de vôlei e os brackets grudaram na minha boca. Arranquei uma parte na quadra e o restante em casa com um alicate. E jurei nunca mais passar perto
da ortodontia. O terceiro era um brilhante recém-formado pelo USP. Um nerd
exemplar. Seu único defeito era a lentidão obsessiva e o fato de atender em
casa, logo após o banho e uma extensa enxurrada de perfume. Graças a ele nunca
mais usei Stiletto do Boticário. Na época da VARIG, passei um por um dentista
bem ortodoxo. Ele me encaminhou para um “curso” de escovação e fio dental. E me
lembro bem da cena dele arrancando o meu siso com força, colocando os pés na
cadeira, como se estivesse fazendo sexo animal. Já psiquiatra, fiz um
(eca!) convênio odontológico e fui
a um dentista perto de casa. Gente boa. Esse era dos “tarados” que a minha
amiga citou: passava o tempo todo falando das crises de orientação sexual e me
perguntava opiniões, que eu tentava responder. A sexta era a mais tarada de
todas. Falava tanto que me deixava tonto. O lado bom é que, enquanto conversava,
ela parava de trabalhar. O que era também o lado ruim, porque uma sessão virava
três. Acho que foi nessa fase que a narcolepsia se agravou. Tive sétima e
oitava juntas num ambulatório no qual eu trabalhava. Essas falavam pouco
durante o atendimento. Conversavam entre si, e com as assistentes, o que leva a
crer que minha dentista atual está errada. O dentista não fala para distrair o
paciente; ele fala para não ficar entediado, o que é muito mais compreensível.
A nona era terrível. Falava pelos cotovelos. Acometida da síndrome do Nouveau
Riche, precisava contar o tempo todo dos famosos que se sentavam naquela
cadeira. E lá ficava eu, mudo, ouvindo ela contar os “causos” das celebridades
enquanto olhava aquele espelhinho cafona do Feng Shui grudado no teto. Hoje em
dia, posso dizer que estou no paraíso. Minha dentista fala pouco, conversa
apenas enquanto estou aguardando a anestesia “bater” ou enquanto se revela o raio-x. Na “brocação”, só
pergunta sobre dor ou algum desconforto, isso quando eu ainda estou acordado.
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