Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Saturday, December 01, 2012

LUIZ GONZAGA: A SANFONA E O BARULHO DA ALMA



Já faz algumas semanas que vi meu pensamento invadido por sertanismos e regionalismos variados. Eu sempre disse que todo mundo tem seu lado brega. Tem gente que vive isso escondido. Conhecia uma senhora muito rica e distinta, fresca mesmo. Dessas peruas que se irritam com gente que fala alto, colocam a mão na frente da boca para esconder o sorriso e vive uma vida desgraçadamente tediosa e cheia de etiquetas. Mas, como um parente seu dizia, ela era fina “até se dar de frente com uma leitoa assada”. Daí todas as serpentes do passado de menina pobre e suja do interior despertavam e se refestelavam em regozijo. Ela sentava como uma aborígene, debruçada sobre os tenros pedaços de leitoa, lambendo os beiços, chupando os ossinhos, limpando a boca com as costas das mãos. Pelo menos ela vivia isso. E naquele momento aquele azedume de rainha se esvaía, dando lugar à alma viva de uma simplória sertaneja. Seus olhos brilhavam. Mas ela só saía do armário com sua cafonice confinada em seu palacete, com poucos parentes, sem a presença dos executivos amigos do marido. Gostoso mesmo era quando, no final do dia, quando todos já estavam dormindo, que ela descia para a cozinha e esquentava os pedaços de leitoa e comia com farofa, com a mão mesmo, amassando os pedaços de carne com a farofa úmida. Às vezes ela até colocava um pouco de guaraná na farofa, do jeitinho que fazia quando era criança.

Eu, como todo mundo, tenho meu lado brega. Aliás, tenho vários. Tenho gosto musical eclético com orelhas preparadas para certos tipos de diferentes de breguice. Churrasquinho de centro da cidade, cachorro quente de porta de estádio, guaranás regionais da Amazônia, toda uma de coisas que são muito gostosas, mas que a chatice das etiquetas insiste em reprimir. Coisa que adoro: lamber prato. Adoro pegar o prato quando a comida terminou e dar uma boa lambida nele. Isso deveria ser regra nos restaurantes, um sinal de satisfação, como os libaneses que arrotam na mesa, mostrando-se satisfeitos. Lembro que fui à casa de um amigo libanês na adolescência e ainda não sabia arrotar. Seu pai e seus tios ficaram todos olhando para minha cara, esperando um arroto de prazer. Tive que fingir um barulhão de arroto e eles festejaram quando ouviram o estrondo fictício. Como não se pode lamber o prato em lugar nenhum, tenho que me contentar a passar discretamente o dedo pelos cantos do prato e enfiar discretamente o dedo à boca para saborear aquele restinho gostoso da mistura dos temperos.

Não que eu não goste do luxo; eu adoro coisas sofisticadas. Mas eu sinto uma verdadeira necessidade da simplicidade em vários momentos da vida. Não apenas aquela simplicidade “proposital” dos paraísos tropicais nordestinos, onde os ricos chegam com seus helicópteros e passam uma semana à luz de lampião como uma aventura exótica. Eu preciso compor o chique com a simplicidade e a breguice. Quando eu resolvi estudar sanfona, muitas pessoas acharam estranho, muitas acharam cafona. Desde que comecei a tocar minha sanfona, o arquétipo da breguice tem me rondado: o forró, a música regional nordestina, triângulos e chapéu de couro. Não que a minha sanfona não vá se aconchegar com a coisa culta: minha Bella Giulietta vai tocar as chansons françaises, os fados, os tangos e as óperas italianas. Mas hoje ela está a serviço da breguice, que nada mais é que a brejeirice de alma.

Essa semana assisti ao filme Gonzaga – De pai para filho. Deixemos a profundidade tocante da delicada relação entre pai e filho; dois artistas fantásticos com almas tão profundamente feridas. Essa parte do filme, que tanto me tocou, merece uma postagem à parte. Mas a genialidade de Luiz Gonzaga com sua sanfona, um homem de simples origens, nascido numa cidade de nome Exu, isso dá muito o que falar. Quando Luiz Gonzaga vai para o Rio de Janeiro para tentar a sorte com sua música, ele aprende, influenciado pelo amigo músico, a tocar fados e outras canções “cultas” e com elas vive à míngua. Não porque as músicas fossem feias; não porque ele não fosse bom sanfoneiro; era porque ele estava, mais por ingenuidade do que por vergonha, negando suas origens. Gonzaga só vira o Reio do Baião quando ele decide tocar o “arrasta-pé”. E mais curiosamente, quando morre sua esposa e ele volta para Exu para um reencontro com as suas origens, ele volta mais Rei do Baião do que nunca: vestido de cangaceiro, sanfona em punho, cheio de Nordeste nas veias. Foi assim que ele conquistou multidões. Quando ele respeitou o desejo da sua alma.

Eu não tenho origens nordestinas. Pelo menos não nessa vida. Mas quando o Nordeste da minha alma me chama para cantar e pra dançar, eu vou correndo, de braços abertos, encontrá-la e ver o que ela tem a me dizer.  Luiz Gonzaga ouviu sua alma. E eu estou tentando continuar ouvindo a minha.

Com tantos manifestos, petições e indignações em tempos de Facebook e outras mídias ultra-instantâneas, deixo aqui o meu manifesto em prol da breguice. Sejamos bregas, sejamos caipiras, sejamos puros.  A alma pede “águas ardentes”, ela não deseja bebidas adulteradas com enfeites sofisticados. Sejamos nós mesmos chiques ou bregas, chiques e bregas, sejamos felizes com o que somos. A alma é impetuosa e barulhenta. Ela fala alto quando aceitamos ouvi-la. Como o canto da sereia, que nos convida a mergulhar no fundo do mar de encontro ao auto-conhecimento. A sanfona da alma nos levar a viajar para o interior, para o sertão, para aquele lugar onde somos sós, só nós e apenas nós. Um apenas que é muita coisa. 

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