LUIZ GONZAGA: A SANFONA E O BARULHO DA ALMA
Já faz algumas semanas que vi meu
pensamento invadido por sertanismos e regionalismos variados. Eu sempre disse
que todo mundo tem seu lado brega. Tem gente que vive isso escondido. Conhecia
uma senhora muito rica e distinta, fresca mesmo. Dessas peruas que se irritam
com gente que fala alto, colocam a mão na frente da boca para esconder o
sorriso e vive uma vida desgraçadamente tediosa e cheia de etiquetas. Mas, como
um parente seu dizia, ela era fina “até se dar de frente com uma leitoa
assada”. Daí todas as serpentes do passado de menina pobre e suja do interior
despertavam e se refestelavam em regozijo. Ela sentava como uma aborígene,
debruçada sobre os tenros pedaços de leitoa, lambendo os beiços, chupando os
ossinhos, limpando a boca com as costas das mãos. Pelo menos ela vivia isso. E
naquele momento aquele azedume de rainha se esvaía, dando lugar à alma viva de
uma simplória sertaneja. Seus olhos brilhavam. Mas ela só saía do armário com
sua cafonice confinada em seu palacete, com poucos parentes, sem a presença dos
executivos amigos do marido. Gostoso mesmo era quando, no final do dia, quando
todos já estavam dormindo, que ela descia para a cozinha e esquentava os
pedaços de leitoa e comia com farofa, com a mão mesmo, amassando os pedaços de
carne com a farofa úmida. Às vezes ela até colocava um pouco de guaraná na
farofa, do jeitinho que fazia quando era criança.
Eu, como todo mundo, tenho meu lado brega.
Aliás, tenho vários. Tenho gosto musical eclético com orelhas preparadas para
certos tipos de diferentes de breguice. Churrasquinho de centro da cidade,
cachorro quente de porta de estádio, guaranás regionais da Amazônia, toda uma
de coisas que são muito gostosas, mas que a chatice das etiquetas insiste em
reprimir. Coisa que adoro: lamber prato. Adoro pegar o prato quando a comida
terminou e dar uma boa lambida nele. Isso deveria ser regra nos restaurantes,
um sinal de satisfação, como os libaneses que arrotam na mesa, mostrando-se
satisfeitos. Lembro que fui à casa de um amigo libanês na adolescência e ainda
não sabia arrotar. Seu pai e seus tios ficaram todos olhando para minha cara,
esperando um arroto de prazer. Tive que fingir um barulhão de arroto e eles
festejaram quando ouviram o estrondo fictício. Como não se pode lamber o prato
em lugar nenhum, tenho que me contentar a passar discretamente o dedo pelos
cantos do prato e enfiar discretamente o dedo à boca para saborear aquele
restinho gostoso da mistura dos temperos.
Não que eu não goste do luxo; eu adoro
coisas sofisticadas. Mas eu sinto uma verdadeira necessidade da simplicidade em
vários momentos da vida. Não apenas aquela simplicidade “proposital” dos paraísos
tropicais nordestinos, onde os ricos chegam com seus helicópteros e passam uma
semana à luz de lampião como uma aventura exótica. Eu preciso compor o chique
com a simplicidade e a breguice. Quando eu resolvi estudar sanfona, muitas
pessoas acharam estranho, muitas acharam cafona. Desde que comecei
a tocar minha sanfona, o arquétipo da breguice tem me rondado: o forró, a
música regional nordestina, triângulos e chapéu de couro. Não que a minha
sanfona não vá se aconchegar com a coisa culta: minha Bella Giulietta vai tocar
as chansons françaises, os fados, os tangos e as óperas italianas. Mas hoje ela
está a serviço da breguice, que nada mais é que a brejeirice de alma.
Essa semana assisti ao filme Gonzaga – De pai para filho. Deixemos a
profundidade tocante da delicada relação entre pai e
filho; dois artistas fantásticos com almas tão profundamente feridas. Essa
parte do filme, que tanto me tocou, merece uma postagem à parte. Mas a
genialidade de Luiz Gonzaga com sua sanfona, um homem de simples origens,
nascido numa cidade de nome Exu, isso dá muito o que falar. Quando Luiz Gonzaga
vai para o Rio de Janeiro para tentar a sorte com sua música, ele aprende,
influenciado pelo amigo músico, a tocar fados e outras canções “cultas” e com
elas vive à míngua. Não porque as músicas fossem feias; não porque ele não
fosse bom sanfoneiro; era porque ele estava, mais por ingenuidade do que por
vergonha, negando suas origens. Gonzaga só vira o Reio do Baião quando ele
decide tocar o “arrasta-pé”. E mais curiosamente, quando morre sua esposa e ele
volta para Exu para um reencontro com as suas origens, ele volta mais Rei do
Baião do que nunca: vestido de cangaceiro, sanfona em punho, cheio de Nordeste
nas veias. Foi assim que ele conquistou multidões. Quando ele respeitou o
desejo da sua alma.
Eu não tenho origens nordestinas. Pelo
menos não nessa vida. Mas quando o Nordeste da minha alma me chama para cantar
e pra dançar, eu vou correndo, de braços abertos, encontrá-la e ver o que ela
tem a me dizer. Luiz Gonzaga ouviu
sua alma. E eu estou tentando continuar ouvindo a minha.
Com tantos manifestos, petições e
indignações em tempos de Facebook e outras mídias ultra-instantâneas, deixo
aqui o meu manifesto em prol da breguice. Sejamos bregas, sejamos caipiras,
sejamos puros. A alma pede “águas ardentes”,
ela não deseja bebidas adulteradas com enfeites sofisticados. Sejamos nós
mesmos chiques ou bregas, chiques e bregas, sejamos felizes com o que somos. A
alma é impetuosa e barulhenta. Ela fala alto quando aceitamos ouvi-la. Como o
canto da sereia, que nos convida a mergulhar no fundo do mar de encontro ao
auto-conhecimento. A sanfona da alma nos levar a viajar para o interior, para o
sertão, para aquele lugar onde somos sós, só nós e apenas nós. Um apenas que é
muita coisa.
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