YEMANJÁ, RAINHA DO MAR, DONA DAS ONDAS DA VIDA

“Abracei o mar na lua cheia, abracei / Abracei o mar / Abracei o mar na lua cheia, abracei / Abracei o mar / Escolhi melhor os pensamentos, pensei / Abracei o mar / É festa no céu, é lua cheia, sonhei / Abracei o mar / E na hora marcada a Dona Alvorada chegou para se banhar / E nada pediu, cantou pro mar / E nada pediu / Conversou com o mar / E nada pediu / E o dia sorriu... / Uma dúzia de rosas, cheiro de alfazema, presentes eu fui levar / E nada pedi / Entreguei ao mar / E nada pedi / Me molhei no mar / E nada pedi Só agradeci...” (Fabiana Cozza, “Agradecer e abraçar”)
Estou na onda “onda” dos arquétipos. Tenho lido Jung, tenho sonhado sonhos mitológicos e ando “incorporando” todo um universo de coisas que havia deixado de fora da minha existência.
Tal como o mar, tenho navegado o barco da minha vida por águas de todos os tipos: calmas, turbulentas, muito calmas, muito turbulentas. Por diversas vezes xinguei, esbravejei, reclamei com Deus por ter que passar por essas turbulências. Deus ficava só olhando, não respondia nada. Queria que eu tirasse minhas conclusões sozinho. E concluí que não podemos ter “partes” da Vida. Amar a Vida é igualzinho amar qualquer outra coisa ou pessoa no mundo: devemos amá-la por inteiro, com sua polpa, seu sumo, seu bagaço, sua casca dura.
Eu fui, voltei, fui de novo, balancei. Joguei a rede. Não pesquei nada. Joguei de novo, acabei pescando alguma coisa. Vi que a coisa é assim mesmo. É como pescar. Porque não basta só o peixe estar lá, não adianta apenas jogar a rede. É preciso jogar várias vezes, movimentar, mudar a rede de lugar. Sem contar as turbulências do mar-vida. Um eterno jogo de se manter de pé num barquinho à deriva.
Na semana passada estive passeando em Salvador. Lamentei não ter podido ficar até terça-feira, dia dois de fevereiro, Dia de Yemanjá. A festa tem fama de ser bonita, e toda a cidade se concentra às margens do Rio Vermelho para cantar, saudar e fazer oferendas à Rainha do Mar. Poderia ter desmarcado os compromissos para ficar na festa. Mas algo me dizia que deveria voltar. Atribuía essa necessidade ao senso de responsabilidade, ao trabalho.
Na segunda-feira, perto da hora de ir embora, recebo o telefonema de uma grande amiga, dizendo que seu pai havia falecido. E era por isso que eu deveria voltar. Para levar um pouco do calor de amor de Salvador e das bênçãos de Yemanjá para minha amiga e sua família.
Compreendi que tudo na vida é exatamente desse jeito: começo, meio e fim. Festejei a vida em Salvador, celebrei a morte em São Paulo. E nesses chuvosos dias paulistas, acho que a cidade combina mesmo com a morte. Do mesmo jeito que Yemanjá pode ser a Senhora da Fertilidade, com seu mar sagrado cheio de vida, ela pode ser também a Senhora da Transformação, cujos ciclos de renovação incluem também a morte.
E assim Yemanjá tem permanecido na minha cabeça esses dias. Antes de partir de Salvador fui reverenciá-la à beira-mar. Dizer a ela o quanto agradeço por estar vivo, o quanto é bom conseguir resolver os problemas, como era bom estar em Salvador dizendo aquilo tudo para ela. Depois fui até a “casinha” dela, construída por pescadores, cheia de oferendas para abrandar a sua ira e seu descontentamento com o instinto destrutivo do homem. Deixei lá umas flores, uns desejos, uns sonhos e um pedaço do meu coração para que possa voltar sempre a Salvador para me sentir inteiro.
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Pensar nessa grande Mãe, me fez lembrar de várias curiosas histórias. A primeira “crônica” que ouvi acerca das sereias data de uns quinze anos. Conheci uma moça bem gordinha que adorava mergulhar, adorava o mar, adorava os seres do mar. Sempre que ia à praia, carregava esnórquel e pé-de-pato para poder mergulhar. Certa vez, em Parati, passou horas embaixo d’água, admirando os seres, sentindo-se parte daquele mundo.
Passado algum tempo resolveu voltar à realidade e, carregando uma estrela-do-mar, emergiu. Um menino de uns cinco anos, de mãos dadas com a sua mãe, pasmou-se ao ver aquela figura portentosa, com cabelos negros, compridos e brilhantes, levando às mãos uma estrela.
“Mamãe, mamãe, veja, é uma sereia, é uma sereia!”
A mãe, assustada com a urgência do filho, olhou na direção do mar e disse:
“Sereia? Imagina menino, você já viu sereia gorda desse jeito?”
O menino não entendeu nada. Sua mãe mesmo havia contado sobre a lenda das sereias e aquela visão era exatamente o que havia imaginado. Deu uma risadinha de desprezo, um sorriso amarelo para sua mãe. Na sua visão de menino havia encontrado Yemanjá. E ela acenou pra ele.
Minha amiga (aquela, ultra-erudita...) disse que quando Cabral avistou sereias na costa brasileira, com seus cabelos compridos e seu lamento sonoro e mágico, descreveu-as gordinhas, loiras ou castanhas; há uma teoria de que ele havia visto na verdade eram peixes-bois enredados em chumaços de algas marinhas, e o ruído que emitiam foi confundido com um lamento de Yemanjá.
Do mesmo jeito que as sereias são seres mitológicos, creio que Cabral, lusitanamente, recriou o mito, tornando as sereias roliças, robustas, como todo peixe-boi deve ser.
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Tenho uma amiga que gosta de badulaques. Compra tudo o que vê, de roupas, acessórios, utensílios domésticos, enfeites. Sua casa tem tanta coisa, tantos objetos decorativos que ao mesmo tempo que me parece “poluído” ativa em mim a sensação de estar imerso no caos da criação do mundo. Uma babilônia bem perto de nós. Uma coisa curiosa é sua “fissura” por alguns “personagens”, como Frida Khalo. A Frida eu entendo. Ela é o arquétipo da sua balbúrdia. Frida era exatamente como ela: esquentada, eufórica, instável, pululante, criativa. Alguns chamariam de louca. Mas é injusto acomodar tanta efervescência sob o manto da loucura. A outra obsessão é por santos e casinhas de santos: compra todos os que encontra e, os que não têm casinhas, ela mesma faz.
E dentre os santos todos, Yemanjá é a estrela primeira da sua residência. Em sua casa, por onde se anda, se encontram coisas da sereia. Imagens, estatuetinhas, estatuetonas, conchas, peixes, barcos, porta-copos, copos, desenhos. Tem até uma sereia de pelúcia. Tudo isso começou quando lhe disseram que ela era filha da santa. E daquele dia em diante, Yemanjá passou a morar em sua vida. Mais precisamente em sua casa.
Quando eu a conheci, não entendi nada. Cadê aquela filha de Yemanjá taciturna, misteriosa, de poucas palavras, um pouco ranzinza, caseira, avessa a grandes baladas? Não existia. Seria um tipo diferente da deusa? Uma Yemanjá do Fogo? Não, não era isso. O fato é que, apesar de sua devoção, nao era ela a sua verdadeira mãe. Tudo isso, todo esse mar revolto, toda essa agitação só podia vir de uma outra deusa: Iansã, Senhora dos Raios, das Faíscas, das ondas. Expliquei a ela que estava louvando a santa errada.
Não que tivesse que deixar de louvar a Rainha do Mar. Mãe de todos os Orixás, Senhora da Bahia de Todos os Santos, guardiã das nossas cabeças e Senhora da Fertilidade, não existe quem não renda homenagens a ela. Só não pode deixar de louvar a sua verdadeira mãe, uma mãe tão presente, tão intensa, tão quente.
Além disso, ser filha de Iansã não significa que Yemanjá não seja mãe dela também, porque ela pode ser uma “segunda mãe”. E mesmo que não seja, conforme fui convivendo com essa amiga, entendi o que Yemanjá fazia em sua vida: quanto mais fogo, mais água é necessária para controlar os incêndios. Esse time-share, essa permuta liga-desliga de maternidade foi realmente obra de Deus.
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Na festa de Yemanjá do ano passado, minha amiga foi visitar a Feira de São Joaquim, na Cidade Baixa. Estive lá esse ano. É uma mistura de Mercado Municipal de cidades nordestinas, com mercado persa, Feira de Acari carioca e Mercado Central do México. Vende-se tudo: frutas, verduras, legumes, roupas, carnes, farinhas, rapaduras, cerâmicas, imagens religiosas, artigos de candomblé, animais vivos. Aliás, é dos animais vivos que advém o insuportável cheiro do lugar. Mais precisamente galinhas. Curiosamente, o único lugar limpo e cheiroso de todo o mercado é o banheiro. Pasmei.
E no ano passado quem pasmou foi minha amiga. Foi lá que ela encontrou a maior preciosidade yemanjanesca que jamais havia visto ou possuído: uma imagem gigante, quase de tamanho natural (pelo menos do tamanho de uma criança de 7 anos), toda furadinha. Por dentro da imagem se acendia uma luz, deixando-a toda iluminada. Era a deusa do mar espalhando paz e iluminação pela sua casa.
Sem nem pensar, tratou de comprar a imagem. O dono da loja embrulhou, lotou de papel bolha, mandou ver no papel embrulho. O carregador do local conduziu a santidade até o táxi e o mensageiro do hotel acomodou-a no quarto do Mercure. Concluindo: minha amiga não fazia idéia do quanto era pesada a deusa e quanto sacrifício dispenderia para essa procissão.
Depois de passeios, jantares, cervejinhas, voltaram para o hotel para dormir. No meio da noite, a tia da minha amiga, uma pessoa muito simpática e sensível, acordou esbaforida. Sonhou que Yemanjá estava tendo uma crise de claustrofobia e pedia ajuda para ela. Pulou da cama, angustiada, e deu de cara com o embrulho enorme, de papel cor de cocô.
“Nossa, minha mãe. A senhora deve estar num sufoco! Perdão, Yemanjá”
E nem bem terminou de falar, tratou de arrancar a porção de papel que cobria a cabeça da santa. E quando olhou para ela, pensando em encontrar um sorriso aliviado e agradecido, percebeu que Yemanjá estava triste. Disse que viu a santa com as sobrancelhas franzidas e com a boca virada para baixo.
A tia entendeu tudo. Como é que ela podia estar feliz, embrulhada num monte de papel e plástico, como que sequestrada de seu habitat, longe do mar, num quarto de hotel de gringo? Reuniu forças e empurrou a estátua para perto da janela, abriu as cortinas e a vidraça, deixando Yemanjá tomar uma fresca. Catou lá nas coisas da sobrinha uma penca de colares, pendurou no pescoço dela; passou um batom bem vermelho em seus lábios de gesso e deu umas pinceladas de pó compacto em suas bochechas. Agora sim, Yemanjá estava feliz!
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A saga de Yemanjá não acaba por aí. Até porque a santa não era a única mercadoria adquirida em Salvador. Minha amiga carregava de tudo: redes de barbante, vidros de pimenta, sabonetes de simpatias, do tipo “cura mau olhado”, “levanta piru”, “chama dinheiro” e muito mais.
Fez o check-in e,enquanto isso Yemanjá esperava pacientemente ao lado, no carrinho de bagagem. Ao embarcar, “mamãe” e minha amiga foram barradas no baile. O despachante não permitiu que “mamãe” embarcasse, por exceder limites de peso, de quantidade de bagagem de mão e de dimensões. E minha amiga esbravejou. Enquanto Yemanjá chora por não poder entrar no avião, Iansã sacode seus leques, assopra uma tempestade e produz muitas faíscas. Mas não teve jeito: a deusa não subiu aos céus.
Dudu, o amigo que a levou ao aeroporto se compadeceu (ou se assustou) com a ira dela e prometeu que levaria sua santa nos próximos dois dias. Mais jeitoso, condescendente e bom de oratória, conseguiu convencer a companhia aérea a levar Yemanjá no banco vazio do avião.
Durante o vôo, Yemanjá saculejou. E Dudu, preocupado com a santíssima, não descuidou um minuto da sua segurança. E num momento de aflição, quando o avião coqueteleava ferozmente, quase fez um gesto de louvar a Deus, olhando o céu, mas parou. Por que pedir a Deus, se Yemanjá estava ao lado dele? E como se fosse um pescador, com seu barquinho chicoteado pelas ondas do mar, tratou de pedir à santa que protejesse sua viagem e que tivesse piedade dele e perdoasse os aviões que lançam cocô e xixi no ar. Condescendência da santa ou não, a tempestade assentou. O vôo atrasou algumas horas. Tempestades pelo caminho, teve que parar em duas cidades por falta de teto, até conseguir chegar em São Paulo.
Por conta do atraso, perdeu a carona e pegou um ônibus no aeroporto para ir direto ao trabalho. Desceu numa estação de metrô, pegou o trem, pegou um ônibus e foi ficando cansado. Já bastante atrasado para a reunião, resolveu pegar um táxi para ir mais rápido. E então começou a chover. Cântaros. A marginal alagou e ele ficou preso no táxi, Yemanjá no seu colo, sem dar uma palavra.
E, de repente, Dudu começou a chorar. Copiosamente. Debulhava-se em lágrimas, sem nem saber por que chorava. Um choro sentido, muito molhado, como se lavasse a alma, um banho de chuva no peito. Talvez fosse uma osmose do pranto de Yemanjá. Talvez fosse o cansaço, a ansiedade, a preocupação. Podia ser tudo isso junto. O fato é que no final do dia, Yemanjá estava sã e salva na casa da minha amiga.
Já faz um ano que ela mora lá. E todas as noites, ilumina a sala, ilumina os rostos das pessoas com seus pontinhos de luz amarelados. Ilumina também o peito, limpando os corações amargurados. Ela ainda nao deciciu se volta a Salvador. Aprendeu a gostar da noite, das festas na casa da minha amiga. Detesta a vida de celebridade. Não conseguia ficar sossegada em Salvador, com gente pedindo favores. Lá todo mundo a tratava como deusa. Sei que tem vários tipos de Yemanjá: Yemanjá-Sobá, Yemanjá-Caiala, Janaína, Oguntê. Mas essa, que mora em São Paulo, no bairro do Cambuci e repousa plácida na sombra dos bambuzais de Iansã, só existe aqui: Yemanjá-Anonimá.
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