LOST IN TRANSLATION: ESTRANGEIROS EM TERRAS ESTRANGEIRAS

Sempre ouvimos várias histórias sobre imigrantes e suas dificuldades com as barreiras da língua do país estrangeiro. Quando eu era criança, minha tia trabalhava numa empresa multinacional. Estudava inglês, falava bem e tinha muito contato com americanos. Certa vez ela trouxe um texto, chamado “An Italian who went to New York” (http://www.klenger.net/humor/italian/italian.htm), onde um italiano contava, em “inglês-macarroni”, seus contratempos durante sua estada em Manhattan. Ele dizia, por exemplo, que ao chegar a um restaurante, a garçonete colocou em sua mesa a colher (spoon), uma faca ( knife), mas não o garfo (forck, que ele chamou de “fock”). Ele explicava a ela que desejava “fock” e ela dizia que todo mundo quer isso, mas ele retrucava, dizendo que deseja “fock” em cima da mesa, e por aí vai....
Lembro de uma piada na qual um árabe ajuda o seu amigo a estacionar o carro e, gritando, avisa para tomar cuidado com a “boste”, que o amigo acredita ser “bosta” e ele acaba batendo o carro na “boste” elétrica...
Essas são piadas, que provavelmente são reproduções de reproduções de histórias contadas e recontadas, que acabam virando lendas urbanas. Mas o fato é que essas histórias não são simples piadas; elas realmente acontecem. Eu mesmo já passei por apuros ao me equivocar com palavras, pronúncias e “falsos cognatos” mundo afora. Certa vez estava viajando pelo México e fomos ao cinema. Saindo da sessão, me dei conta de que havia esquecido meus óculos escuros dentro da sala e, ao voltar, perdi vários minutos tentando encontrar a palavra certa para óculos em espanhol. Tentei de tudo: lunetas, sunglasses, lunettes, óculos com a língua presa, óculos escuros com a língua presa e nada. Finalmente ela entendeu, através da mímica, que eu buscava meus “anteojos” e me deixou voltar na sala.
Quando estive em Portugal, havia acabado de me formar e era realmente muito duro. Tinha passagens quase gratuitas como funcionário de companhia aérea e viajei com “very low budget”: levei quinhentos dólares para passar dez dias em duas pessoas. E devo dizer que deu certo. Na viagem de ida, sentei-me ao lado de um habitué de Portugal que, apesar do bafo insuportável, me deu várias dicas interessantes sobre Lisboa. Logo no primeiro dia, fomos ao Restaurante João do Grão, comer bacalhau com grão-de-bico, bem no centro de Lisboa. Chegando lá, perguntei ao garçom se os pratos eram bem servidos e ele, sem pestanejar, respondeu: “Ora, pois; se estiveres com muita fome é mal servido; se estiveres com pouca fome é bem servido”. E isso não me respondeu nada. Muito tempo depois descobri que se fala de “bom garfo” sobre restaurantes baratos com comida farta.
Em Portugal, brasileiros são famosos por procurarem insistentemente iguarias como “Pastéis de Santa Clara” e “Fios de Ovos”. Quando estive lá, tive várias encomendas e acabei por descobrir que esses são doces portugueses que só existem no Brasil. Feliz de quem os inventou. É como querer comer “pão francês” na França. Outra coisa que descobri, mas dessa vez sem precisar pagar nenhum mico: nunca encontrei esfihas em nenhum restaurante de origem árabe dos lugares por onde passei, a não ser no Brasil. E vários sites, blogs e fóruns dizem a mesma coisa, exceto em um, no qual encontrei uma receita de esfiha libanesa (http://www.waleg.com/kitchen/archives/009498.html), além de alguns relatos da presença de esfihas em supermercados libaneses no Canadá. Mas, via de regra, não peça esfihas, nem no Líbano, nem em Dubai, nem nos Emirados Árabes. Provavelmente não vai achar.
Em minha última viagem aos Estados Unidos, decidi que ia fazer Eggs Benedicts em casa. Encontrei o molho holandês (pronto!), os English Mufffins, os ovos e só faltava o raio do Canadian Bacon. Procurei em toda a ala de frios, procurei no açougue e nada. De repente, eu achei que havia achado: um pacote de bacon defumado bem carnudo e, no rótulo, escrito “Made in Canadá”. Chegando em casa, arranquei risos das pessoas. O bacon fabricado no Canadá não era a mesma coisa que Canadian Bacon, então fiz com presunto mesmo. Foi só quando cheguei em São Paulo, dentro do Pão de Açúcar, que conectei o nome à “pessoa”: aqui se chama Lombo canadense...
Conheço um brasileiro que mora em Nova York há mais de dez anos. Não sei agora, mas da última vez que eu o vi, ainda não falava uma palavra em inglês, mas tem trabalho, casa, carro, dinheiro, roupas caras. Achei muito estranho, mas depois me lembrei daqueles japoneses no bairro da Liberdade que não falam uma palavra em português e dos coreanos que fingem não falarem. É realmente possível morar sem falar. Esse cara contou que, ao chegar na “América”, não falava uma palavra em inglês, muito diferente dos dias atuais, em que consegue falar duas meias-palavras: “Oumaigó” (Oh, my God!) e “Iu-isténdi” (Do you understand?).
Disse que um dia se perdeu no metrô e que via os guardas fazendo sinais com a mão de que o metrô estava fechado e ele simplesmente não conseguia chegar em casa, então ficou sentado no chão, chorando, até que adormeceu e foi acordar na manhã seguinte. Daí ele aprendeu a lição; orgulhoso, repassa o ensinamento aos conterrâneos: “Agora eu aprendi e guarda essa dica. Quando vier a Manhattan, guarda sempre dez dólar no bolso e, se você se perder no metrô, sai da estação e pega um táxi para a rua 42”. Da última vez que nos vimos, saímos para almoçar. Ele sugeriu uma churrascaria brasileira nova e rebatemos; fomos ao tradicional Diner que costumamos frequentar. Achei que a escolha pela churrascaria fosse um arrombo de brasilidade; não, não era. Era a impossibilidade de ler o cardápio em inglês. Nem preciso dizer que a dificuldade com a língua, na grande maioria dos casos, é inversamente proporcional ao quociente de inteligência.
Cheguei a pensar em mascarar, mudar a nacionalidade, mas acho que roubaria muito da essência da história, além de acabar perdendo a piada. Tenho um vizinho americano que acabou se tornando um amigo. Bom papo, divertido, sorridente, cheio de empolgação e alegria com a mudança para o Brasil. Veio morar aqui a trabalho e encontrar o amor. Com o passar dos meses, sua empolgação murchou e seu sorriso desapareceu. Continua divertido, mas tenho certeza de que irá embora do Brasil falando horrores dos brasileiros, porque encontrou problemas em quase tudo que encontrou. Um certo dia encontrou um conhecido na rua. Cumprimentaram-se e o conhecido disse a ele: “Aparece em casa uma hora dessas.” No dia seguinte estava lá, na casa do “amigo”, pontualmente, à uma hora da tarde. Tocou, tocou, ninguém respondeu. Não conseguia entender porque o “amigo” havia convidado e não estava em casa.
Certa vez resolveu dar uma festa em sua casa. Distribui convites, mandou emails e até pediu RSVP (Répondez S'il Vous Plaît). Nem achou estranho que ninguém respondeu a seu pedido, porque um “amigo” havia dito ou ele havia entendido que ninguém costumava fazer isso no Brasil. Mas eu acho que é porque a maioria dos seus convidados nem sabiam o que isso significava. Eu e meus amigos confirmamos e fomos. Sabendo da sua obsessão americana com pontualidade, chegamos às nove e trinta, já que a festa estava marcada para as nove. Ele estava desesperado. Fomos os primeiros e praticamente os últimos a chegar. Na verdade, a festa era uma pré-festa para outra festa badalada na cidade. Quando deu onze e trinta, chegaram seis pessoas, que não eram seus convidados, mas sim de seu roommate. Meia hora depois, em clima de “saída”, ele recolheu as comidas, guardou as bolachas, os patês, os enfeites da mesa, dizendo que era hora de ir pra tal festa. Não conseguia entender o motivo que faz as pessoas aparecerem duas ou três horas depois do horário das festas e jantares. Para nós, brasileiros, é muito claro que o horário marcado, oficial, é apenas o horário em que o dono da festa deve estar pronto, porque a festa começa mesmo duas horas depois. Acho que esse costume deve ter aparecido como uma fusão do atraso feminino com o receio de ser o primeiro a chegar na festa.
Aqui no Brasil, só conheci uma família que chegava na hora marcada das festas. Era praticamente uma família estrangeira dentro da minha própria família. Uma tia-avó, com seu marido e sua filha solteirona. Era marcar cinco horas, lá estava ela às quatro e meia. E se ofendia porque os donos da festa ainda não estavam prontos. Depois de vários inconvenientes, passamos a colocar um fuso horário para eles: quando a festa estava marcada pra começar às seis, no convite deles vinham escrito sete. E tudo ficou bem melhor...
Esse amigo americano sempre se enrosca em pessoas erradas. Outro dia me perguntou: “Por que os brasileiros eram assim?” E eu perguntei: “Assim como?”. “Outro dia, conheci um cara no parque, fomos pra casa, transamos e ele disse que me amava, que queria ficar comigo pra sempre. Alguns dias depois, disse que o cara ligou chorando, dizendo que sua mãe estava internada e precisava de dinheiro para comprar remédios. Emprestei mil reais para ele e nunca mais apareceu”. E acrescentou: “E outra coisa que não compreendo. Conheço alguém, trocamos telefones e todos sempre me ligam a cobrar. Será que tem algum problema com os telefones brasileiros?”
Não acho que seja um problema de QI, como no caso no brasileiro em Nova York. Creio se tratar de uma mistura de carência emocional com pobre interpretação da língua e o interesse que um estrangeiro desperta em brasileiros interesseiros. Em qualquer nível social, noto que os brasileiros têm o péssimo costume de endeusar a presença do estrangeiro. Basta alguém ouvir um sotaque diferente ou perceber feições incomuns que se põe a “pavonizar” para ser notado pelo gringo. Quer seja um paraguaio, um aborígene de uma ilha africana, um ladrão australiano ou um lorde inglês, o estrangeiro é supervalorizado. Não apenas pelos dólares que ele deixa no país, mas pelos dólares que ele deixa com seus acompanhantes e também pelo pretenso status de estar acompanhado de um gringo.
Falar do tabu do estrangeiro, do imigrante é também falar de senhas e códigos. Tenho pensado muito nisso ultimamente. A questão do segredo, do não-dito e dos códigos subjacentes a esse silêncio, dos pactos de silêncio, do hábito de se calar sem manifestar os desacordos, as insatisfações e também a impossibilidade de se comunicar ou a comunicação mal entendida, mal interpretada... Todo um universo interligado, complexo, curioso.