Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Wednesday, March 31, 2010

LOST IN TRANSLATION: ESTRANGEIROS EM TERRAS ESTRANGEIRAS


Sempre ouvimos várias histórias sobre imigrantes e suas dificuldades com as barreiras da língua do país estrangeiro. Quando eu era criança, minha tia trabalhava numa empresa multinacional. Estudava inglês, falava bem e tinha muito contato com americanos. Certa vez ela trouxe um texto, chamado “An Italian who went to New York” (http://www.klenger.net/humor/italian/italian.htm), onde um italiano contava, em “inglês-macarroni”, seus contratempos durante sua estada em Manhattan. Ele dizia, por exemplo, que ao chegar a um restaurante, a garçonete colocou em sua mesa a colher (spoon), uma faca ( knife), mas não o garfo (forck, que ele chamou de “fock”). Ele explicava a ela que desejava “fock” e ela dizia que todo mundo quer isso, mas ele retrucava, dizendo que deseja “fock” em cima da mesa, e por aí vai....

Lembro de uma piada na qual um árabe ajuda o seu amigo a estacionar o carro e, gritando, avisa para tomar cuidado com a “boste”, que o amigo acredita ser “bosta” e ele acaba batendo o carro na “boste” elétrica...

Essas são piadas, que provavelmente são reproduções de reproduções de histórias contadas e recontadas, que acabam virando lendas urbanas. Mas o fato é que essas histórias não são simples piadas; elas realmente acontecem. Eu mesmo já passei por apuros ao me equivocar com palavras, pronúncias e “falsos cognatos” mundo afora. Certa vez estava viajando pelo México e fomos ao cinema. Saindo da sessão, me dei conta de que havia esquecido meus óculos escuros dentro da sala e, ao voltar, perdi vários minutos tentando encontrar a palavra certa para óculos em espanhol. Tentei de tudo: lunetas, sunglasses, lunettes, óculos com a língua presa, óculos escuros com a língua presa e nada. Finalmente ela entendeu, através da mímica, que eu buscava meus “anteojos” e me deixou voltar na sala.

Quando estive em Portugal, havia acabado de me formar e era realmente muito duro. Tinha passagens quase gratuitas como funcionário de companhia aérea e viajei com “very low budget”: levei quinhentos dólares para passar dez dias em duas pessoas. E devo dizer que deu certo. Na viagem de ida, sentei-me ao lado de um habitué de Portugal que, apesar do bafo insuportável, me deu várias dicas interessantes sobre Lisboa. Logo no primeiro dia, fomos ao Restaurante João do Grão, comer bacalhau com grão-de-bico, bem no centro de Lisboa. Chegando lá, perguntei ao garçom se os pratos eram bem servidos e ele, sem pestanejar, respondeu: “Ora, pois; se estiveres com muita fome é mal servido; se estiveres com pouca fome é bem servido”. E isso não me respondeu nada. Muito tempo depois descobri que se fala de “bom garfo” sobre restaurantes baratos com comida farta.

Em Portugal, brasileiros são famosos por procurarem insistentemente iguarias como “Pastéis de Santa Clara” e “Fios de Ovos”. Quando estive lá, tive várias encomendas e acabei por descobrir que esses são doces portugueses que só existem no Brasil. Feliz de quem os inventou. É como querer comer “pão francês” na França. Outra coisa que descobri, mas dessa vez sem precisar pagar nenhum mico: nunca encontrei esfihas em nenhum restaurante de origem árabe dos lugares por onde passei, a não ser no Brasil. E vários sites, blogs e fóruns dizem a mesma coisa, exceto em um, no qual encontrei uma receita de esfiha libanesa (http://www.waleg.com/kitchen/archives/009498.html), além de alguns relatos da presença de esfihas em supermercados libaneses no Canadá. Mas, via de regra, não peça esfihas, nem no Líbano, nem em Dubai, nem nos Emirados Árabes. Provavelmente não vai achar.

Em minha última viagem aos Estados Unidos, decidi que ia fazer Eggs Benedicts em casa. Encontrei o molho holandês (pronto!), os English Mufffins, os ovos e só faltava o raio do Canadian Bacon. Procurei em toda a ala de frios, procurei no açougue e nada. De repente, eu achei que havia achado: um pacote de bacon defumado bem carnudo e, no rótulo, escrito “Made in Canadá”. Chegando em casa, arranquei risos das pessoas. O bacon fabricado no Canadá não era a mesma coisa que Canadian Bacon, então fiz com presunto mesmo. Foi só quando cheguei em São Paulo, dentro do Pão de Açúcar, que conectei o nome à “pessoa”: aqui se chama Lombo canadense...

Conheço um brasileiro que mora em Nova York há mais de dez anos. Não sei agora, mas da última vez que eu o vi, ainda não falava uma palavra em inglês, mas tem trabalho, casa, carro, dinheiro, roupas caras. Achei muito estranho, mas depois me lembrei daqueles japoneses no bairro da Liberdade que não falam uma palavra em português e dos coreanos que fingem não falarem. É realmente possível morar sem falar. Esse cara contou que, ao chegar na “América”, não falava uma palavra em inglês, muito diferente dos dias atuais, em que consegue falar duas meias-palavras: “Oumaigó” (Oh, my God!) e “Iu-isténdi” (Do you understand?).

Disse que um dia se perdeu no metrô e que via os guardas fazendo sinais com a mão de que o metrô estava fechado e ele simplesmente não conseguia chegar em casa, então ficou sentado no chão, chorando, até que adormeceu e foi acordar na manhã seguinte. Daí ele aprendeu a lição; orgulhoso, repassa o ensinamento aos conterrâneos: “Agora eu aprendi e guarda essa dica. Quando vier a Manhattan, guarda sempre dez dólar no bolso e, se você se perder no metrô, sai da estação e pega um táxi para a rua 42”. Da última vez que nos vimos, saímos para almoçar. Ele sugeriu uma churrascaria brasileira nova e rebatemos; fomos ao tradicional Diner que costumamos frequentar. Achei que a escolha pela churrascaria fosse um arrombo de brasilidade; não, não era. Era a impossibilidade de ler o cardápio em inglês. Nem preciso dizer que a dificuldade com a língua, na grande maioria dos casos, é inversamente proporcional ao quociente de inteligência.

Cheguei a pensar em mascarar, mudar a nacionalidade, mas acho que roubaria muito da essência da história, além de acabar perdendo a piada. Tenho um vizinho americano que acabou se tornando um amigo. Bom papo, divertido, sorridente, cheio de empolgação e alegria com a mudança para o Brasil. Veio morar aqui a trabalho e encontrar o amor. Com o passar dos meses, sua empolgação murchou e seu sorriso desapareceu. Continua divertido, mas tenho certeza de que irá embora do Brasil falando horrores dos brasileiros, porque encontrou problemas em quase tudo que encontrou. Um certo dia encontrou um conhecido na rua. Cumprimentaram-se e o conhecido disse a ele: “Aparece em casa uma hora dessas.” No dia seguinte estava lá, na casa do “amigo”, pontualmente, à uma hora da tarde. Tocou, tocou, ninguém respondeu. Não conseguia entender porque o “amigo” havia convidado e não estava em casa.

Certa vez resolveu dar uma festa em sua casa. Distribui convites, mandou emails e até pediu RSVP (Répondez S'il Vous Plaît). Nem achou estranho que ninguém respondeu a seu pedido, porque um “amigo” havia dito ou ele havia entendido que ninguém costumava fazer isso no Brasil. Mas eu acho que é porque a maioria dos seus convidados nem sabiam o que isso significava. Eu e meus amigos confirmamos e fomos. Sabendo da sua obsessão americana com pontualidade, chegamos às nove e trinta, já que a festa estava marcada para as nove. Ele estava desesperado. Fomos os primeiros e praticamente os últimos a chegar. Na verdade, a festa era uma pré-festa para outra festa badalada na cidade. Quando deu onze e trinta, chegaram seis pessoas, que não eram seus convidados, mas sim de seu roommate. Meia hora depois, em clima de “saída”, ele recolheu as comidas, guardou as bolachas, os patês, os enfeites da mesa, dizendo que era hora de ir pra tal festa. Não conseguia entender o motivo que faz as pessoas aparecerem duas ou três horas depois do horário das festas e jantares. Para nós, brasileiros, é muito claro que o horário marcado, oficial, é apenas o horário em que o dono da festa deve estar pronto, porque a festa começa mesmo duas horas depois. Acho que esse costume deve ter aparecido como uma fusão do atraso feminino com o receio de ser o primeiro a chegar na festa.

Aqui no Brasil, só conheci uma família que chegava na hora marcada das festas. Era praticamente uma família estrangeira dentro da minha própria família. Uma tia-avó, com seu marido e sua filha solteirona. Era marcar cinco horas, lá estava ela às quatro e meia. E se ofendia porque os donos da festa ainda não estavam prontos. Depois de vários inconvenientes, passamos a colocar um fuso horário para eles: quando a festa estava marcada pra começar às seis, no convite deles vinham escrito sete. E tudo ficou bem melhor...

Esse amigo americano sempre se enrosca em pessoas erradas. Outro dia me perguntou: “Por que os brasileiros eram assim?” E eu perguntei: “Assim como?”. “Outro dia, conheci um cara no parque, fomos pra casa, transamos e ele disse que me amava, que queria ficar comigo pra sempre. Alguns dias depois, disse que o cara ligou chorando, dizendo que sua mãe estava internada e precisava de dinheiro para comprar remédios. Emprestei mil reais para ele e nunca mais apareceu”. E acrescentou: “E outra coisa que não compreendo. Conheço alguém, trocamos telefones e todos sempre me ligam a cobrar. Será que tem algum problema com os telefones brasileiros?”

Não acho que seja um problema de QI, como no caso no brasileiro em Nova York. Creio se tratar de uma mistura de carência emocional com pobre interpretação da língua e o interesse que um estrangeiro desperta em brasileiros interesseiros. Em qualquer nível social, noto que os brasileiros têm o péssimo costume de endeusar a presença do estrangeiro. Basta alguém ouvir um sotaque diferente ou perceber feições incomuns que se põe a “pavonizar” para ser notado pelo gringo. Quer seja um paraguaio, um aborígene de uma ilha africana, um ladrão australiano ou um lorde inglês, o estrangeiro é supervalorizado. Não apenas pelos dólares que ele deixa no país, mas pelos dólares que ele deixa com seus acompanhantes e também pelo pretenso status de estar acompanhado de um gringo.

Falar do tabu do estrangeiro, do imigrante é também falar de senhas e códigos. Tenho pensado muito nisso ultimamente. A questão do segredo, do não-dito e dos códigos subjacentes a esse silêncio, dos pactos de silêncio, do hábito de se calar sem manifestar os desacordos, as insatisfações e também a impossibilidade de se comunicar ou a comunicação mal entendida, mal interpretada... Todo um universo interligado, complexo, curioso.

Monday, March 29, 2010

O TABU DAS SENHAS OU AS SENHAS DOS TABUS?


Somos rodeados de senhas. Desde que o mundo é o mundo que conhecemos, os homens se valem de senhas, códigos secretos, símbolos para protegerem seus tesouros. Hoje, com a tecnologia, somos bombardeados com a obrigatoriedade de portar senhas para tudo o que fazemos. Senhas para o banco, que geralmente são três ou quatro, porque precisamos de uma para o cartão magnético, que em um dos meus bancos são duas, uma para a internet, uma senha móvel para transações na internet... Considerando que tenho conta em cinco bancos diferentes, multiplique essa parafernália toda....

Precisamos de senhas para a internet, para as contas de emails, para os cadastros dos sites, para resgatar pontos, para fazer compras, para acompanhar a chegada das encomendas. Cada novo site, uma nova descoberta e...uma nova senha, um novo nickname... Os celulares precisam de senhas também... Para ouvir mensagens, para acessar a caixa postal internacional, para falar com um de nossos atendentes.... As companhias aéreas e seus pontos, milhagens também requisitam senhas, inúmeras... Só na TAM, por exemplo, tenho três. Tem uma para acessar a internet, uma para o resgate de pontos, uma para sei lá mais o quê...

Todos os meses recebo créditos de dois hospitais nos quais trabalho, correspondentes à cesta básica. Chamo de vale-coxinha. Tenho dois cartões magnéticos de duas empresas diferentes, com dois códigos diferentes. E como se não bastasse trocar as senhas entre elas, vez ou outra vem à minha cabeça a senha de um outro vale-coxinha aposentado! E como ninguém disse que a vida é fácil, na maioria das vezes as senhas não podem ser escolhidas, somos escolhidos por elas!

Além dessas senhas da pouco prática vida cotidiana, somos expostos a um outro universo de senhas que nos dão acesso a todo tipo de coisas, lugares e sei lá mais o quê... Uma certa analista minha tinha seu consultório instalado num prédio super-chique em São Paulo. Como muitos psicanalistas, ela não tinha secretária e adotava aquele velho esquema de “entrou por uma porta e saiu pela outra”, para que as pessoas não se encontrassem... E na porta de entrada, uma fechadura eletrônica com uma senha... Maldita senha que me causava tantos constrangimentos solitários! Quando ela me deu a senha, tratei de arquivar no meu celular. Na primeira vez anotei errado. Na segunda vez, decorei na cabeça, mas inverti os números. Numa outra vez, esqueci os números, mas a bateria do celular acabou e fiquei sem ver. Num dos raros dias em que acertei a senha, sentei-me confiante na sala de espera, orgulhoso do meu progresso. E o tempo passava, e nada acontecia. Ela não abria a porta, eu não ouvia o burburinho da consulta anterior. “Gozado, ela costuma estar aqui essa hora”... Bingo! Fui no dia errado!

Um amigo me contou que uma vez viajou a Miami com sua irmã e descobriram uma muambeira baiana em Downtown, num prédio comercial qualquer. Foram lá porque ela tinha preços imperdíveis, segundo a irmã dele. Chegando lá, a irmã tocou a campainha e, quando a pessoa perguntou quem era, grudou a cara na porta e, quase sussurrando, disse: “O rato roeu a roupa do rei de Roma”. Misteriosa senha que abria o Sésamo da muambagem.

Uma outra amiga confidenciou (sim, porque isso é secretíssimo...) que numa certa favela em São Paulo, há um grupo de costureiras que confeccionam roupas para diversas grifes famosas da cidade. Elas recebem os tecidos nobilíssimos, fazem as peças e, com o que sobra, confeccionam algumas “pecinhas a mais” para fazer uma revenda informal das roupas de grife. Dizem que a favela é altamente visitada pelas falsas peruas e pelas peruas econômicas... E, pra não sair do módulo, há uma senha para entrar nas casas das costureiras. É preciso dizer que quem mandou você lá foi a “Tia Maricota” ou coisa que o valha. Então uma misteriosa porta favelar se abre e a costureira vai buscar uma única peça de roupa, no seu tamanho. Se não gostou, ela sai e volta com outra peça, e por aí vai. O curioso é que a favela é uma oficina de costura inteira e as costureiras trocam as peças entre si, de diferentes marcas. Creio que isso tem a função de dispersar a suspeita de fraude e de conferir maior variabilidade das mercadorias.

Em Nova York tem acontecido uma coisa engraçada. Em pequenos becos de Chinatown ou mesmo dentro de furgões velhos, ocorre um mercado informal de falsificações de bolsas, sapatos e relógios. Você não precisa de senha para entrar; as senhas servem para informar as vendedoras de que a polícia está chegando ou coisa aparecida. Tenho duas amigas que foram “raptadas” por uma Ping-pong vendedora de bolsas falsificadas e, no que a polícia se aproximava, ficaram duas horas presas num cubículo abafado de um prédio abandonado, até que a senha de "liberação" fosse disparada.

As senhas também servem para despistar ligações telefônicas ou mensagens “perigosas”. Quando era adolescente, uma de minhas amigas tinha uma família muito rígida e, quando ela desconfiava que havia alguém na “extensão”, atendia falando “boi”, querendo dizer que havia “boi na linha”. Outra técnica conhecida é mudar de assunto quando se percebe que tem alguém perto que não pode escutar a conversa, ou mesmo falar “alô, alô, alô” e desligar em seguida, simulando “falha técnica”.

Tinha uma amiga que adorava sair com homens casados. Certa vez estava conversando pelo MSN com um suposto amante, quando foi flagrada pela mulher dele, marcando uma “ponta” para o fim de tarde... Desde então criou um “código” no qual fazia uma pergunta específica que o amante deveria responder com uma resposta padrão. Além disso, criou um novo perfil com nome e foto de homem. Entrava no MSN e dizia: “E aí brow?” e o amante deveria responder “Fala aí meu, tudo na paz!”. E era só então que tinha certeza que estava falando com o amante e não com a mulher dele.

Além das senhas escritas, faladas ou desenhadas, temos as senhas que são códigos corporais de conduta. Uma piscada de olho, um sorriso maroto, um levantar de sobrancelhas pode querer dizer muita coisa. Uma vez li em algum lugar que, nos encontros casuais entre gays em lugares públicos, como metrô, supermercados e shopping, depois de trocar olhares, a confirmação de que o “cara” estava querendo alguma coisa de fato se dava quando ele colocava a mão no “bagulho”. Ouvi dizer que os judeus ortodoxos colocam o chapéu em cima da cama para “avisar” a mulher que ela deve se preparar para “fazer mais um neném”.

Sim, as senhas sempre existirão. Precisamos delas para garantir nossa segurança, salvaguardar nosso dinheiro, documentos, jóias e integridades. O problema é quando as senhas ocupam o lugar da palavra, quando substituímos a verdadeira palavra por códigos e reduzimos a comunicação a seqüências estereotipadas de números, letras e gestos. É então que nos tornamos robôs, sem diálogo, sem conversa, apenas códigos.

Assim vai se assassinando a cultura, a fala, a escrita e, por conseguinte, a comunicação. Sim, é claro que uma língua pode mudar, “evoluir”, se tornando mais simples, mais compacta. Mas vejo que a comunicação vai ficando cada vez mais pobre, mais falha, mais difícil, pelo excesso de códigos em volta dela.

O pior dos códigos e senhas é quando eles são indecifráveis. Quando não conseguimos compreender ou captar ou apreender os “sinais” para entrar num certo ambiente ou situação, ou mesmo quando os nossos não são compreendidos.

Wednesday, March 24, 2010

AS COISAS QUE PERDEMOS PELO CAMINHO


Se, de um lado, meu avô materno foi sempre meu ídolo, meu pai, meu herói, não posso dizer nada parecido sobre o outro lado, sobre meu avô paterno. Meu avô João não queria dizer muita coisa pra mim. Mas esses dias estava pensando sobre as coisas que perdemos, sobre coisas que deixamos pra trás em nossas vidas e lembrei no meu avô, o velho João da Mata.

Conheci o João da Mata “tardiamente”. Tinha quase quatro anos quando encontrei pela primeira vez a família do meu pai, no interior de São Paulo. Fomos a Ituverava, ao lado de Ribeirão Preto e nos hospedamos num hotel na cidade. Conhecemos a Tia Maria, uma tia de meu pai, e seu marido, o Tio Nenê. Nunca entendi porque o chamavam desse jeito, se seu nome era Olivar. Depois concluí que Olivar era realmente um nome muito esquisito e que ele tinha um carinho, um jeito aconchegante de nos receber que parecia mesmo um nenê. (Acho que “nenê” devia ser uma apelido entre os antigos para disfarçar um nome bem feio, como a mãe de uma amiga, que se chamava Pierina e era chamada de Dona Nenê...)

Toda vez que íamos à casa deles, nas férias de verão, ele, que era marceneiro, fazia um brinquedo de madeira de “surpresa”, lousas, carrinhos, guarda-roupas, casinhas de boneca (essa par minha irmã, é claro...). Tia Maria não era tão doce quanto ele, mas estava sempre pronta a oferecer comidas gostosas e guloseimas para nós. Lembro que ela detestava o cunhado, João da Mata, que, segundo ela, matou sua irmã porque não quis comprar os remédios que ela precisava.

Mas um dia, mais por insistência de minha mãe do que pela vontade do meu pai, fomos encontrar o João da Mata. A cena era tétrica. Ele morava em Guará, um cidade horrorosa ao lado de Ribeirão Preto, cheia de casas populares e gente muito, muito pobre. Casas do “BNH” pintadas a cal, com todas as cores de todas as calcinhas de todas as menininhas pobres do mundo: azul-calcinha, rosa-bebê, amarelo-ouro, verde-bandeira... A casa de meu avô era assustadora. Chão de terra batida, pouca ou nenhuma faxina, terra vermelha esvoaçante sujando nossos pés, banheiro sem porta...

Muito simpático, o velho veio dar um amistoso abraço, envolvendo-me com a catinga impregnada na sua camisa de cetim rosa, apregoada de flores vermelhas... Flores murchas tentando sobreviver naquele azedume todo... Tascou um beijo banguela e babento em meu rosto e ainda tive que pedir a benção, beijando aquela mão enrugada e encardida de bóia-fria. Sim, ele era bóia-fria e sua vida, suas histórias eram de alguém que passou a vida cortando cana, mandioca e milho, fugindo de cobras, enrolando cigarro de palha e indo ao culto da Assembléia de Deus.

Voltamos algumas vezes lá, em outras férias. A única coisa que me fazia gostar um pouco da peregrinação era poder encher vários sacos de seixos rolados (aquelas pedrinhas redondinhas de rios) que encontrava facilmente pela rua. Trazia, feliz da vida, um saco enorme de pedras que usava para construir bichinhos de Durepox.

Alguns anos se passaram e meu pai, numa missão de “redenção familiar” resolveu convidar o velho para morar conosco. Lembro que ele chegou depois do Natal. Com sua mala velha, sua calça marrom, chapéu de palha e boa furada, lá veio ele, chegando manso, com sua camisa de cetim rosa. Depois descobri que era a única.

A única palavra que consigo associar a esse tempo é INVASÃO. O velho dormia no meu quarto e passava o resto do dia comendo nozes e castanhas, quebrando-as no chão da casa e jogando as cascas pelo chão. Um certo domingo, fomos almoçar num desses rodízios cafonas de frango com polenta em São Bernardo (sim, eu também tenho um passado negro!). Nunca me esqueço da cena, dele comendo uma fatia de tomate-caqui. Quando a bandeja de salada chegou, ele deu uma olhada assustada para aquele tomatão e não se fez de rogado: espetou o garfo na maior fatia que encontrou e enfiou-a de uma só vez boca adentro. Embora nunca tenha presenciado, creio que essa é imagem mais próxima que pude ter de uma cena de canibalismo.

Passadas algumas semanas, meu avô dava sinais de desconforto. Do mesmo que jeito que ele nos deixava desconfortáveis, tenho certeza que ele também ficava. Aquele não era seu mundo. Acho que ele sentia falta da poeira, da roça, da bóia-fria. Deu uma desculpa e se mandou para Guará, dizendo que precisava pegar umas coisas lá. Antes de partir, ele disse que traria para mim um cadeado para eu colocar no portão de casa.

Dias se passaram e o velho não chegava. Ao cabo de quinze dias, recebemos uma ligação que o velho havia morrido. Chegou em Guará, ganhou um filhote de vira-lata. Levou uma mordida, ficou com medo de pegar raiva. Foi ao posto de saúde, para tomar vacina anti-rábica. Morreu de choque anafilático. Eu acho que ter que escolher entre morar em São Paulo em nossa casa ou morrer sozinho em Guará, ficou com a segunda opção. Um “homicídio celestial”, graças a Deus! O médico, que talvez nem médico fosse, sumiu da cidade logo após a morte do velho. Nem o nome dele sabiam.

Mas o velho João da Mata nunca esteve tão vivo em nossas vidas. Notícia dada, fomos para Guará com o carro emprestado de um tio, um Opala branco de duas portas, desses que cabem menos gente. E lá fomos eu, minha irmã, meu pai, minha mãe grávida de meu irmão, minha tia Neiva e minha tia Nair, ambas irmãs de meu pai. Sete pessoas ou oito, se considerar meu irmão. A viagem de ida, embora apertada, teve um certo ar “emocionante” para uma criança. Viajamos de noite, clima fresco, dormia um pouco, acordava, dormia de novo.

No velório, cenas hilárias. Nunca tinha visto velório de cidadezinhas precárias. Na pequena sala de estar, sobre a mesa de fórmica, equilibrava-se o caixão contendo o velho João. Atrás dele, dois mastros prateados ostentavam uma bandeira de cetim com frases bíblicas. Logo abaixo, uma coroa de flores murchas. Pela casa, multidões de tios, tias, primos ,cozinhavam, comiam, dividiam os pertences. Uma prima foi embora antes do enterro com a desculpa de ter que cuidar do marido; na verdade carregava consigo o rádio-relógio de herança compulsória. No quarto, duas tias, que antes se abraçavam e lamentavam as desgraças que a vida lhes proporcionara, estapeavam-se, puxando, de cada lado, as mangas puídas da camisa de cetim rosa.

Contam os vizinhos que meu avô não ia voltar pra São Paulo. A explicação seria a mocinha de vinte e poucos anos que chorava à beira do caixão. Diziam que era sua namorada.

Outra questão polêmica: no quarto, na cozinha, os parentes comentavam que a dentadura do velho havia sumido. Apesar de rústico, o velho era vaidoso. Mesmo sem tomar muito banho, passava brilhantina nos poucos cabelos. Há anos guardava seu caixão em cima do guarda-roupa, para que não fosse enterrado direto na terra, como havia deixado sua finada esposa. E a polêmica dentadura sumida não foi encontrada. João da Mata, morria aos setenta anos, velado na sala de estar, em cima da mesa de fórmica, banguela.

Não participei do enterro. Preferi ficar na rua, catando seixos rolados para levar para São Paulo. Aliás, até hoje, com trinta e seis anos de vida, ainda não fui a um único enterro sequer. Meu último adeus, aos mais queridos ou aos socialmente obrigatórios, realizo no velório mesmo. E boto orgulhoso a culpa em meu Pai Xangô, um orixá que não suporta a morte... Saindo de Guará, tratei de fazer cumprida a promessa de meu avô: saquei o cadeado velho do seu portão, sem chave, abrindo e fechando sozinho, mas era meu, como ele havia prometido.

O pior de tudo foi a volta a São Paulo. Tia Nadir, uma “arauta” da
Igreja Deus é Amor, herdara do velho João seu desgosto por banhos. Quatro dias se passaram, desde a nossa chegada até a partida, e seu “corpinho” não vira uma gota de água. Nem preciso contar como foi voltar, até São Paulo, no Opala branco, com sete pessoas, incluindo a “arauta”.

Minha Tia Maria, que sempre detestou o velho João da Mata, recusou-se a ir ao velório. Uma semana após sua morte, sonhara com ele. Dizia ela que ele pedia a ela que fosse buscar a dentadura dele, que estava enterrada no quintal. Riu do primeiro sonho, mas passou a desgostar depois de ter o mesmo sonho mais uma dúzia de vezes. Supersticiosa e culpada por nunca ter gostado do velho, e com um medo danado de que sua alma não descansasse, abalou-se de Ituverava a Guará, entrou na casa dele, vasculhou gavetas, armários e o quintal da casa. Não achou nada, voltou preocupada e tratou de rezar uma missa em prol de sua alma. Acho que era peça que meu avô pregou nela. Fez com que ela fosse até lá, constatar sua morte e ver-se obrigada a rezar por ele.

Não tive tempo de aprender a gostar dele. Mas também não tive tempo de desgostar, porque ele não ficou tempo suficiente em minha casa para tanto. E não lembrei dele porque tenha sentido saudades, como vez ou outra sinto do meu avô Armando. A lembrança se deu quando hoje, ao pegar meu carro no lava rápido, descobri que o pedaço do meu dente quebrado que estava no porta-trecos do carro havia sido aspirado, com todos os papéis, garrafas plásticas e pelos de cachorro que haviam no carro.

Também não sinto falta daquela época. Acho que a única coisa que perdi pelo caminho foi a oportunidade de ter vivido dias mais felize. Como seria possível? Não seria. Mas acho que encontrei o que perdi, ao poder recontar essas histórias, transformando em graça, comédia, piada, os dias tão pouco agradáveis da minha infância.

Sunday, March 21, 2010

DESCONTENTAMENTO INFINITO


Antigamente as coisas eram mais fáceis. As pessoas nasciam, cresciam, morriam com menos alarde. Curtiam um viver mais simples, as coisas da natureza, uma boa comida, carinho, amor, amigos. Esse “antigamente” era a época da juventude do mundo. Conforme o mundo cresceu, veio o descontentamento próprio da idade. Uma “aborrescência”, uma insatisfação com o status da hora.

Ganhamos carros, telefones ultra-modernos, aparelhos cibernéticos, encurtamos distâncias, falando com pessoas em tempo real pela tela do computador. Lembro de quando era mais jovem e tinha um grande amigo que foi morar no Japão. Trocávamos cartas. Cada carta demorava, em média, dez dias pra chegar. Por muitos anos guardei-as comigo, como símbolo da nossa amizade. A amizade partiu, as cartas não existem mais. Se aquela época fosse hoje, não haveria nem cartas. Somente MSN, Skype, iChat, Windows Live Messenger, ICQ...

Temos tudo tão à mão que perdemos a noção do valor das coisas. Não existe mais saudade. Ou, pelo menos, não podemos demonstra-la. Outro dia encontrei uma amiga que não via há anos – pessoalmente. A gente se fala, se beija, manda amor e presentes todos os dias no Facebook. Ela lê meu blog, conhece meus sobrinhos, viu meus álbuns das minhas viagens. Sabe de tudo, mas será que ela lembra meu nome?

Nem de sexo precisamos mais. Podemos fazer sexo virtual. Tem sites de pessoas que ficam se masturbando na CAM. É só pagar. Pagar e levar. Também não precisamos ir mais ao supermercado, porque as compras podem ser feitas pela internet e são entregues em casa. Não olhamos mais se a carne está bonita, se o peixe está fresco, não apertamos mais os abacates pra ver se eles estão maduros. E quando menos você sai de casa, mais você ganha: suas compras viram prêmios, bônus, torradeiras, calças Levis e milhas do Cartão Fidelidade da TAM.

Sempre fico observando as crianças e os adolescentes. Nenhuma dificuldade. Google, Wikipedia e muitas outras bases de dados podem ensinar qualquer coisa. Lembro quando tinha que fazer trabalhos de Geografia e copiava páginas de enciclopédias. Claro que não tenho saudades. Mas esse jovens de hoje têm tudo tão fácil, tão à mão, que acabaram perdendo a noção do valor das coisas. Também não precisamos ler livros. Não precisamos tê-los, nem aluga-los, nem empresta-los. E-books, Kindles, audio-books, leitores virtuais.

Somos como aqueles japoneses que vemos em Paris: com uma semana de férias por ano, a “graça” está em filmar tudo na viagem pra ver depois, em casa. Ou como os americanos que vão a Las Vegas e conhecem todo o mundo em praticamente uma avenida. Pra que viajar a Paris, se a Torre Eiffel é igualzinha à de Vegas? Logo, logo, os pacotes de viagens serão substituídos por pacotes de Blue Ray com as melhores viagens do mundo. Lembro quando assistia ao desenho dos Jetsons e eles comiam comprimidos com gosto das “antigas” comidas e outro dia fui a um restaurante vegetariano que costumo frequentar e ouvi a dona dizendo: “Chegou ração humana!”. Perguntei o que seria, e ela explicou que era uma mistura de fibras e proteínas e o caralho-que-o-parta... O pior é que tem um monte de gente que come isso...O futuro realmente chegou...

Tudo cada vez mais fácil acaba por tornar a vida cada vez mais difícil, porque ela se torna chata. Qual objetivo podemos ter na vida, qual a meta, qual o sonho, se tudo já vem feito, pronto pra vestir ou consumir? E ainda vivemos mais do que vivíamos antes. Muito mais tempo para o tédio.

Já inventaram vários substitutos para o sexo. Bonecos infláveis, vibradores e “dildos” cada vez mais potentes e performáticos. Logo, logo chega um vibrador que você assobia ou grita o nome dele, e daí ele vem correndo e faz o serviço, como o “Thing”, a mãozinha autômata da Família Adams, porque a fantasia já chega pronta, em embalagens discretas, pelo correio. E do mesmo jeito que inventaram o i-doser, uma espécie de pega-trouxas que produz sons e vibrações que provocam as sensações das diferentes drogas, devem inventar o i-sex ou i-fuck ( na verdade o i-doser já vende a vibração do orgasmo...

Quem desejar ficar sem ter nenhum trabalho, a modernidade também trouxe o “no-sex” ou “i-not-fuck”... Prozac, Cocaína, Ecstasy...basta tomar que o sexo vai embora. O pau não sobe mais, as pererecas não ficam mais molhadinhas. A libido desaparece. É uma forma moderna de não se ter trabalho com os dilemas do sexo.

Até a experiência mística perdeu a graça. Recentemente uma pesquisadora em neurociências descobriu uma forma de mapear a região do cérebro relacionada às experiências místicas, como visões, êxtase místico, entre outros. E pior: conseguiu estimula-las eletricamente. Portanto, em pouco tempo não será preciso meditar, ir a templos, rezar. Você terá um aparelho no seu criado-mudo, menor que um rádio-relógio, bastando conecta-lo à sua testa para encontrar Deus. Até a Madonna não precisará perder mais tempo com a Cabala. A única coisa é que o aparelho não vem equipado com o Jesus que ela encontrou no Rio de Janeiro.

Tudo isso que existe era pra tornar o mundo mais fácil, não mais sem-graça. Mas eu não acho que a culpa sejam os aparelhos, as comodidades, a tecnologia. Acho que tudo isso, inclusive a tecnologia, é reflexo da falta de sentido, da falta de compromisso e de maturidade da humanidade.

Somos insatisfeitos com tudo à nossa volta. O melhor restaurante tem algo errado; a pessoa pela qual nos interessamos não serve porque falta isso ou sobra aquilo; a viagem de férias teria sido melhor se não tivesse acontecido tal coisa. Somos criados baseados num modelo de perfeição divina e esperamos que tudo o que encontrarmos pela frente deve vir pronto para uso, impecável, funcionando perfeitamente, como o iPhone ou o iPod que acabamos de tirar da caixa. E como qualquer mercadoria, devolvemos na menor ameaça de defeito.

Nesse mundo tão ilusoriamente perfeito, onde aparentemente tudo funciona tão bem, não há espaços para defeitos ou mazelas. A mulher foi educada para encontrar o príncipe, que deve ser bonito, cavalheiro, talentoso, bem-sucedido, muito bem resolvido financeiramente e emocionalmente, ser bom de cama, culto, gostar da sogra e não ser dependente da mãe, no mínimo. Onde é possível encontrar um homem desses? Na caixa, direto da fábrica de andróides.

Tão grande é a necessidade de perfeição, que esquecemos de valorizar o que possa haver de belo, interessante, importante numa pessoa. Os defeitos, as “faltas” ficam sob os holofotes, cegando as possibilidades. O príncipe não é príncipe se não preencher todos os requisitos.

Só consigo pensar numa resposta para isso: lendo um livro sobre Jung, gravei na minha mente algo que ele disse. Muitas vezes as pessoas fazem psicoterapia com a expectativa de conseguir uma vida de felicidade plena, sem problemas. O máximo que ela conseguirá será lidar melhor com seus problemas, mas eles sempre existirão. Portanto, não existe vida sem problemas, do mesmo jeito que não existem pessoas ou coisas perfeitas. É a ilusão de encontrar a perfeição que faz a maioria das pessoas tão infeliz.

Wednesday, March 10, 2010

SÃO PAULO RESTAURANT WEEK OU A QUINZENA DA FRANÇA NO BRASIL


Sim, eu sou um guloso confesso. Gosto de cozinhar, gosto de comer a comida do outros, gosto de experimentar novos pratos. Experimentar restaurantes novos, atravessar a cidade e até ir pra outras cidades para provar alguma novidade. Além de guloso, sou consumista. Mas toda vez que viajo, a minha maior “gana” de consumismo está nos temperos, nos sabores, nos utensílios para cozinha.

Quando ouço falar de uma comida diferente, fico com ela na cabeça enquanto não satisfaço a minha curiosidade. Às vezes me decepciono. Certa vez estive em Manaus a trabalho e os “locais” falaram que eu tinha que experimentar o café da manhã regional e comer tapioca com tucumã. Fiquei possuído. Saí feito louco atrás desse tucumã, que é uma fruta típica da Amazônia. Imaginei um fruto suculento, pastoso, saboroso, misturado com o salgadinho da tapioca. Descobri um parque ao lado do local do curso, o Parque do Mindú, que servia o tal café regional. Num intervalo da aula, caminhei uns 20 minutos até o local e fiquei extasiado ao encontrar uma barraquinha vendendo tapioca com tucumã.

Esperei a confecção do prato, com água na boca. Fui correndo pra mesa e na primeira mordida, nada. A parte do tucumã que se come é a casca da fruta e tem um curioso sabor de... nada. Era como se eu mastigasse cascas secas de laranja, embora essas têm gosto e cheiro. Voltando, decepcionado, contei aos alunos minha decepção, e eles me disseram que “existem tucumãs e tucumãs”. Pode ser que sim, mas encerrei minhas tentativas. Da Amazônia, fico com a farinha d’água, com o pato no tucupi, tacacá e pirarucu. E quase nada mais.

Já faz algum tempo, assistindo ao programa do Jamie Oliver (Oliver’s Twist), vi o gordinho preparando pratos para um piquenique. Champagne, Club Sandwich de Lagosta e frutas vermelhas levemente aquecidas com açúcar de confeiteiro, suspiros e Clotted Cream. Vendo ele preparar essa sobremesa, babei. O Clotted Cream, como me informou o Mr. Google, é um tipo de creme de leite de uma região específica da Inglaterra. Não conseguia pensar em outra coisa. Procurei nos supermercados chiques da cidade e nada. Ninguém conhecia esse tal creme. Passado algum tempo estive em Londres e, acompanhado de uma amiga comilona, finalmente encontrei o tão sonhado creme. O aspecto era estranho. Um pote de plástico, um aspecto denso e uma capa de gordura que encobria o conteúdo. Compramos morangos frescos num empório e uns suspiros gigantes com sabor de chocolate. Só não pudemos “refogar” os morangos, mas nos afogamos na sobremesa demoníaca. Gordura pura, essa é a chave. E pra quem gosta de creme de leite, digo com certeza que, ninguém é mais o mesmo depois do Clotted Cream.

Quando fiz meu estágio em Paris, tive a oportunidade de circular e desvendar diversos endereços gastronômicos maravilhosos na cidade. Um deles, encontrei por acaso num dia de muita fome, no Marais (lê-se “marré”), o bairro gay-judeu de Paris. Lá descobri o “Le Bouquet des Archives”, um restaurante-bar muito charmoso. Comi o “PF” local e me deliciei. Numa outra viagem, levei meus amigos para conhecer essa “pérola” e comemos Steak Tartare Poëlé. Traduzindo: o delicioso steak tartare, um prato composto de carne crua, muitos temperos e um ovo cru, mas com um requinte parisiense. Uma passadinha de segundos na frigideira (com manteiga, bien sûre, deixando uma fina camada de cozimento por fora, acentuando o sabor da carne. Tivemos a pachorra de voltar lá e repetir o prato numa viagem de quatro dias. (Falando nisso, tive um acesso de fome, mas tenho que me contentar com uma barrinha de cereais no momento).

Vejam vocês que estou falando de maravilhas gastronômicas cuja composição não é nada sofisticada. E resolvi exemplificar primeiro com maravilhas tão simples para que entendam meu descontentamento, uma vez que não é imprescindível a presença de trufas negras, ovas de ouriço cego da Lapônia ou flores-de-sal retiradas pelas virgens islâmicas de Marseille. Basta bom gosto e criatividade.

E o São Paulo Restaurant Week representa mal esse espírito. Criado (ou copiado ou inspirado) a partir das versões internacionais mundo afora, compõe-se de um período de duas semanas no qual um pool de restaurantes oferece um Menu “Prix Fixe”, composto de entrada, prato principal e sobremesa, por preços razoáveis. Por trinta a cinqüenta reais, em média, variando entre almoço ou janta e o tipo de restaurante, é uma excelente oportunidade para pessoas que amam degustar pero-non-gastar e visitar restaurantes chiques e famosos da cidade. Já estive em várias temporadas do evento em vários lugares e procuro prestigiar e aproveitar também em São Paulo. Mas esse ano, fiquei um tanto decepcionado.

Passeando por alguns restaurantes da promoção, não todos, o que mais me decepcionou foi a “economia” de alguns pratos. Entradas minúsculas, pouca quantidade no prato principal, muito, mas muito arroz. Sobremesas insípidas. Tudo bem que a proposta é oferecer pratos “especialmente preparados” para o evento e não discordo que esse preparo especial se componha a partir de uma composição harmônica entre preço, quantidade e qualidade. Não, não estou querendo comer trufas negras por 30 reais. Mas fiquei realmente decepcionado com alguns lugares que visitei, por servirem pratos totalmente “franceses”, não pelo sabor, mas pela pequenez. Já estive em diversos restaurantes sofisticados na França, mas os pratos mais “franceses” que já encontrei foram no Brasil. Não preciso dizer que saí de vários desses restaurantes com fome, contendo minha fúria para não fazer um pit stop no Black Dog da Rua Joaquim Eugênio. Num desses dias, chegando em casa, a fome aumentou. Conhecendo minhaa gulodice e o tamanho do meu estômago, terminei a noite com um belo sanduíche de queijo e peito de peru (light...).

Essa “escassez” de comida me fez lembrar os tempos de faculdade, quando eu ia com uma amiga numa cantina italiana, pedíamos um único prato para dois gordos e entupíamos a comida de queijo ralado para matar a fome de modo econômico. Mas hoje as coisas mudaram na minha vida e passar fome pagando caro não faz parte do meu cardápio.

Do mesmo modo que não vou deixar de freqüentar o tal hotel francês que serviu bigato no brunch, provavelmente não vou deixar de freqüentar o São Paulo Restaurant Week, nem mesmo os restaurantes que visitei e nos quais me senti um pouco roubado. Como bom brasileiro, parecido com aqueles que reelegem os mesmos ladrões a cada eleição, persisto sendo assaltado de forma “fina”. Nada que um bom vinho não amenize.

Sunday, March 07, 2010

SUB-ASSASSINATOS


Nessas épocas de grandes catástrofes espalhadas pelo mundo, além das que já fazem “ponto fixo”, acabamos por valorizar mais a vida. Reclamamos menos do sábado chuvoso que atrapalhou nossos planos e agradecemos por ficarmos em casa, sãos e salvos, felizes e sequinhos, longe das enchentes.

Fazemos credo-em-cruz por nao ter fechado aquele pacote baratinho para o Chile ou por não estar voando no mesmo avião da American Airlines que a Luciana Gimenez, o que configuraria uma dupla catástrofe.

Enfim, somos levados a ficar mais crentes, mais místicos, mais condescendentes com os pequenos problemas do cotidiano. Ficamos mais caridosos, doando roupas, dinheiro, comidas. Seja para o Haiti, para o Chile ou para a Zona Leste, brota a “embrionada” sensação de fraternidade.

Mas o mundo continua a rodar, gente continua a morrer de fome, de guerras, de doenças incuráveis, de amor e de acidentes de moto. Sim, tenho pavor de motos. A própria palavra, pra mim, é uma corruptela de “morte”..Morte,morte,morte,mote,moto,morte. Fim. Ponto.

Sei que tem gente cuidadosa. Sei que tem motoboys fantásticos que levam meus documentos enquanto estou protegido da chuva, sei que, apesar do meu pavor, não recusaria uma voltinha de Harley-Davidson pela Route 66 ou pela Côte D’Azur. Mas ainda assim, como esse sonho continua no capítulo sonhos, numa página muito próxima da Mega Sena, continuo tendo pavor de motos.

Mas quando um adulto, mentalmente capaz ou quase, resolve dirigir uma moto, nada a fazer senão lamentar e rezar. Não tenho filhos, mas é isso que faria com meus sobrinhos. Não proibiria ferozmente, mas não daria um tostão para que comprasse uma moto. Acho que esse tipo de paixão deve ser compreendida, do mesmo modo que espero que compreendam minha paixão por Paris, Nova York, Häagen Dazs, Juliette Binoche e chocolate.

Resolvi falar sobre motos, mas não pelas motos em si. Motivado por uma cena que vi hoje no trânsito e que tenho visto com frequência: crianças das garupas de motocicletas de seus pais irresponsáveis e assassinos. Hoje estava na Rua Domingos de Morais, por voltas das 13:30h, quando vejo uma menina que, pela delicadeza dos bracinhos que seguravam na traseira da moto, deveria ter uns sete anos, no máximo. De capacete cor-de-rosa, orgulhosa da garupa do seu pai, tio, padrasto. Uma aventura fascinante. E se houvesse um acidente? Braço pra um lado, perna pro outro, traumatismo craniano e à menininha tão linda sobram duas opções: subir aos céus ou ficar retardada e paraplégica.

É claro que no meio das catástrofes pode acontecer muita coisa. Acidentes podem acontecer, sem maiores danos. “Ufa, foi só um susto!”. Mas e se for mais sério que isso? E se essa menininha linda voar longe com o impacto e for parar do outro lado da pista? Você consegue imaginar sua filhinha paraplégica e com perturbações mentais advindas de um acidente pelo qual você foi (i)responsável?

Daí fui pesquisar a questão da legislação e veja o que encontrei: “O artigo 244, inciso V do CTB estipula que aquele que conduzir motocicleta, motoneta e ciclomotor transportando criança menor de 7 (sete) anos ou que não tenha , nas circunstâncias, condições de cuidar de sua própria segurança, comete uma infração de trânsito de natureza gravíssima. Se a criança for menor de sete, presume-se que ela não possa cuidar de sua própria segurança”.

Sete anos.... é uma boa idade pra andar na garupa de moto... realmente é inclusive o momento ideal para uma criança aprender a dirigir e a conduzir tratores! Puxa vida! Que merda de legislação é essa! Como é que pode uma criança poder andar na garupa de uma moto com sete anos, já que ela é capaz de cuidar da sua segurança e paradoxalmente ter que esperar 11 anos mais para poder fumar, beber e dirigir?

Parece que tem um projeto de lei tramitando por “aí”, tentando elevar a idade de sete para dez anos. Que avanço enorme! Dez anos é realmente muito diferente! Uma criança de dez anos deveria ser praticamente um adulto! Ora, bolas! Pra mim, nem sete, nem dez, nem doze... No mínimo dezesseis!

Sim, eu já bati um papo com Freud e Jung e compreendi os motivos “obscuros” que me levaram a falar sobre isso hoje, além de me incomodar com isso há tempos e ter visto mais um exemplo insano hoje.

Mas vamos abandonar o campo subjetivo e pensar só no aspecto prático do risco de acidentes com crianças em garupas de motos. E ponto.