AS COISAS QUE PERDEMOS PELO CAMINHO

Se, de um lado, meu avô materno foi sempre meu ídolo, meu pai, meu herói, não posso dizer nada parecido sobre o outro lado, sobre meu avô paterno. Meu avô João não queria dizer muita coisa pra mim. Mas esses dias estava pensando sobre as coisas que perdemos, sobre coisas que deixamos pra trás em nossas vidas e lembrei no meu avô, o velho João da Mata.
Conheci o João da Mata “tardiamente”. Tinha quase quatro anos quando encontrei pela primeira vez a família do meu pai, no interior de São Paulo. Fomos a Ituverava, ao lado de Ribeirão Preto e nos hospedamos num hotel na cidade. Conhecemos a Tia Maria, uma tia de meu pai, e seu marido, o Tio Nenê. Nunca entendi porque o chamavam desse jeito, se seu nome era Olivar. Depois concluí que Olivar era realmente um nome muito esquisito e que ele tinha um carinho, um jeito aconchegante de nos receber que parecia mesmo um nenê. (Acho que “nenê” devia ser uma apelido entre os antigos para disfarçar um nome bem feio, como a mãe de uma amiga, que se chamava Pierina e era chamada de Dona Nenê...)
Toda vez que íamos à casa deles, nas férias de verão, ele, que era marceneiro, fazia um brinquedo de madeira de “surpresa”, lousas, carrinhos, guarda-roupas, casinhas de boneca (essa par minha irmã, é claro...). Tia Maria não era tão doce quanto ele, mas estava sempre pronta a oferecer comidas gostosas e guloseimas para nós. Lembro que ela detestava o cunhado, João da Mata, que, segundo ela, matou sua irmã porque não quis comprar os remédios que ela precisava.
Mas um dia, mais por insistência de minha mãe do que pela vontade do meu pai, fomos encontrar o João da Mata. A cena era tétrica. Ele morava em Guará, um cidade horrorosa ao lado de Ribeirão Preto, cheia de casas populares e gente muito, muito pobre. Casas do “BNH” pintadas a cal, com todas as cores de todas as calcinhas de todas as menininhas pobres do mundo: azul-calcinha, rosa-bebê, amarelo-ouro, verde-bandeira... A casa de meu avô era assustadora. Chão de terra batida, pouca ou nenhuma faxina, terra vermelha esvoaçante sujando nossos pés, banheiro sem porta...
Muito simpático, o velho veio dar um amistoso abraço, envolvendo-me com a catinga impregnada na sua camisa de cetim rosa, apregoada de flores vermelhas... Flores murchas tentando sobreviver naquele azedume todo... Tascou um beijo banguela e babento em meu rosto e ainda tive que pedir a benção, beijando aquela mão enrugada e encardida de bóia-fria. Sim, ele era bóia-fria e sua vida, suas histórias eram de alguém que passou a vida cortando cana, mandioca e milho, fugindo de cobras, enrolando cigarro de palha e indo ao culto da Assembléia de Deus.
Voltamos algumas vezes lá, em outras férias. A única coisa que me fazia gostar um pouco da peregrinação era poder encher vários sacos de seixos rolados (aquelas pedrinhas redondinhas de rios) que encontrava facilmente pela rua. Trazia, feliz da vida, um saco enorme de pedras que usava para construir bichinhos de Durepox.
Alguns anos se passaram e meu pai, numa missão de “redenção familiar” resolveu convidar o velho para morar conosco. Lembro que ele chegou depois do Natal. Com sua mala velha, sua calça marrom, chapéu de palha e boa furada, lá veio ele, chegando manso, com sua camisa de cetim rosa. Depois descobri que era a única.
A única palavra que consigo associar a esse tempo é INVASÃO. O velho dormia no meu quarto e passava o resto do dia comendo nozes e castanhas, quebrando-as no chão da casa e jogando as cascas pelo chão. Um certo domingo, fomos almoçar num desses rodízios cafonas de frango com polenta em São Bernardo (sim, eu também tenho um passado negro!). Nunca me esqueço da cena, dele comendo uma fatia de tomate-caqui. Quando a bandeja de salada chegou, ele deu uma olhada assustada para aquele tomatão e não se fez de rogado: espetou o garfo na maior fatia que encontrou e enfiou-a de uma só vez boca adentro. Embora nunca tenha presenciado, creio que essa é imagem mais próxima que pude ter de uma cena de canibalismo.
Passadas algumas semanas, meu avô dava sinais de desconforto. Do mesmo que jeito que ele nos deixava desconfortáveis, tenho certeza que ele também ficava. Aquele não era seu mundo. Acho que ele sentia falta da poeira, da roça, da bóia-fria. Deu uma desculpa e se mandou para Guará, dizendo que precisava pegar umas coisas lá. Antes de partir, ele disse que traria para mim um cadeado para eu colocar no portão de casa.
Dias se passaram e o velho não chegava. Ao cabo de quinze dias, recebemos uma ligação que o velho havia morrido. Chegou em Guará, ganhou um filhote de vira-lata. Levou uma mordida, ficou com medo de pegar raiva. Foi ao posto de saúde, para tomar vacina anti-rábica. Morreu de choque anafilático. Eu acho que ter que escolher entre morar em São Paulo em nossa casa ou morrer sozinho em Guará, ficou com a segunda opção. Um “homicídio celestial”, graças a Deus! O médico, que talvez nem médico fosse, sumiu da cidade logo após a morte do velho. Nem o nome dele sabiam.
Mas o velho João da Mata nunca esteve tão vivo em nossas vidas. Notícia dada, fomos para Guará com o carro emprestado de um tio, um Opala branco de duas portas, desses que cabem menos gente. E lá fomos eu, minha irmã, meu pai, minha mãe grávida de meu irmão, minha tia Neiva e minha tia Nair, ambas irmãs de meu pai. Sete pessoas ou oito, se considerar meu irmão. A viagem de ida, embora apertada, teve um certo ar “emocionante” para uma criança. Viajamos de noite, clima fresco, dormia um pouco, acordava, dormia de novo.
No velório, cenas hilárias. Nunca tinha visto velório de cidadezinhas precárias. Na pequena sala de estar, sobre a mesa de fórmica, equilibrava-se o caixão contendo o velho João. Atrás dele, dois mastros prateados ostentavam uma bandeira de cetim com frases bíblicas. Logo abaixo, uma coroa de flores murchas. Pela casa, multidões de tios, tias, primos ,cozinhavam, comiam, dividiam os pertences. Uma prima foi embora antes do enterro com a desculpa de ter que cuidar do marido; na verdade carregava consigo o rádio-relógio de herança compulsória. No quarto, duas tias, que antes se abraçavam e lamentavam as desgraças que a vida lhes proporcionara, estapeavam-se, puxando, de cada lado, as mangas puídas da camisa de cetim rosa.
Contam os vizinhos que meu avô não ia voltar pra São Paulo. A explicação seria a mocinha de vinte e poucos anos que chorava à beira do caixão. Diziam que era sua namorada.
Outra questão polêmica: no quarto, na cozinha, os parentes comentavam que a dentadura do velho havia sumido. Apesar de rústico, o velho era vaidoso. Mesmo sem tomar muito banho, passava brilhantina nos poucos cabelos. Há anos guardava seu caixão em cima do guarda-roupa, para que não fosse enterrado direto na terra, como havia deixado sua finada esposa. E a polêmica dentadura sumida não foi encontrada. João da Mata, morria aos setenta anos, velado na sala de estar, em cima da mesa de fórmica, banguela.
Não participei do enterro. Preferi ficar na rua, catando seixos rolados para levar para São Paulo. Aliás, até hoje, com trinta e seis anos de vida, ainda não fui a um único enterro sequer. Meu último adeus, aos mais queridos ou aos socialmente obrigatórios, realizo no velório mesmo. E boto orgulhoso a culpa em meu Pai Xangô, um orixá que não suporta a morte... Saindo de Guará, tratei de fazer cumprida a promessa de meu avô: saquei o cadeado velho do seu portão, sem chave, abrindo e fechando sozinho, mas era meu, como ele havia prometido.
O pior de tudo foi a volta a São Paulo. Tia Nadir, uma “arauta” da
Igreja Deus é Amor, herdara do velho João seu desgosto por banhos. Quatro dias se passaram, desde a nossa chegada até a partida, e seu “corpinho” não vira uma gota de água. Nem preciso contar como foi voltar, até São Paulo, no Opala branco, com sete pessoas, incluindo a “arauta”.
Minha Tia Maria, que sempre detestou o velho João da Mata, recusou-se a ir ao velório. Uma semana após sua morte, sonhara com ele. Dizia ela que ele pedia a ela que fosse buscar a dentadura dele, que estava enterrada no quintal. Riu do primeiro sonho, mas passou a desgostar depois de ter o mesmo sonho mais uma dúzia de vezes. Supersticiosa e culpada por nunca ter gostado do velho, e com um medo danado de que sua alma não descansasse, abalou-se de Ituverava a Guará, entrou na casa dele, vasculhou gavetas, armários e o quintal da casa. Não achou nada, voltou preocupada e tratou de rezar uma missa em prol de sua alma. Acho que era peça que meu avô pregou nela. Fez com que ela fosse até lá, constatar sua morte e ver-se obrigada a rezar por ele.
Não tive tempo de aprender a gostar dele. Mas também não tive tempo de desgostar, porque ele não ficou tempo suficiente em minha casa para tanto. E não lembrei dele porque tenha sentido saudades, como vez ou outra sinto do meu avô Armando. A lembrança se deu quando hoje, ao pegar meu carro no lava rápido, descobri que o pedaço do meu dente quebrado que estava no porta-trecos do carro havia sido aspirado, com todos os papéis, garrafas plásticas e pelos de cachorro que haviam no carro.
Também não sinto falta daquela época. Acho que a única coisa que perdi pelo caminho foi a oportunidade de ter vivido dias mais felize. Como seria possível? Não seria. Mas acho que encontrei o que perdi, ao poder recontar essas histórias, transformando em graça, comédia, piada, os dias tão pouco agradáveis da minha infância.
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