“E EU QUE ERA TÃO TRISTE, DESCRENTE DESSE MUNDO” *
*Trecho da música Corcovado, de João Gilberto.
Comecei a escrever muito cedo. Poesias, contos, crônicas. Mas era na
poesia que eu sangrava; era essa navalhada que fazia desafogar minha dor, meu peito oprimido. Um dia
publicarei minhas poesias. O livro tem até nome. Tem até cor. Um livro preto,
cheio de tristeza misturada de esperança. Hoje nem eu tenho muita coragem de
visitar esses porões através de meus escritos. Porque é tanta felicidade na
minha vida, no meu peito, que essa coisa escura do passado me faz um tanto mal.
Está tudo lá, guardados, nos porões, jamais esquecido.
Tem uma faceta minha que adora contar minhas agruras, escorregar pelos
meus feitos heróicos e desembocar na estrada em que me encontro hoje; tem um gozo,
uma satisfação em mostrar o quanto sou vencedor. Gosto de contar a mim mesmo,
relembrar tudo o que passei nos momentos em que o barco da vida balança mais
forte do que achamos poder suportar. Daí a memória serve para dizer, em tom
forte de pai, e voz doce de mãe que a tempestade irá passar. Como aqueles
grandes mitos que ouvimos; como nas histórias dos heróis que lutam e vencem
batalhas, como a vendedora de sanduíches na praia que se torna empresária,
gosto de dizer a mim mesmo que já comi gramas e tropecei em pedras mais pesadas
e que sou capaz de driblar esse novo problema.
Também gosto de rememorar esses pesados momentos até para quem não me
conhece e está passando por dificuldades. Amigos, pacientes, parentes. Pessoas
que precisam poder enxergar e acreditar que a dor passa, que a ferida estanca,
que o sofrimento acaba. Nesses anos todos, muita gente ouviu vários pedaços da
minha história e pode, através dela, levantar a cabeça, olhar para frente e
seguir andando. É lógico que há níveis diferentes de problemas e sofrimentos,
mas acreditar que é possível, ajuda e muito quem está passando por
dificuldades.
Há cerca de duas semanas, encontrei um paciente que não via há uns 7
anos. Engraçado que, um dia antes, pensei nele: “Por onde andará fulano? Como
será que ele está?”. E no dia seguinte, no meu plantão no hospital, ele aparece
para uma consulta, sem saber que me encontraria. Sua queixa atual não era nada
frente às dificuldades pelas quais tinha passado; estava ansioso e estressado,
sobrecarregado com o trabalho. E numa conversa relativamente rápida, pude dizer
isso a ele; o quanto ele havia
crescido, tudo o que havia conquistado e que deveria ter paciência. Eu sei.
Paciência é algo fácil de pedir, difícil de ter. Mas ela veio de braços dados
com a esperança de dias melhores.
E então ele me disse o quanto eu tinha sido importante na vida dele, o
quanto eu o ajudei e que tudo o que ele havia conquistado, devia a mim, porque
ninguém acreditava na possibilidade dele vir a se tornar alguém, conquistar
coisas, exceto eu. Disse que lembrava das histórias que contava e do quanto eu
falava que ele seria tão capaz quanto eu de vencer os obstáculos. E ele
acreditou.
Esse encontro foi terapêutico, curativo para nós dois. Ele trouxe para
mim um presente muito maior que a gratidão; ele trouxe a certeza que amor e
atenção nesse trabalho de cuidar das mentes fazem uma grande diferença na vida
das pessoas. Mas trouxe a vontade de agradecer àqueles que me ajudaram desse
jeito em minha vida. Amigos, terapeutas, familiares. Gente que me deu todo tipo
de alimento, do físico ao espiritual, do corpo à alma.
É claro que a vida continuará com seus movimentos. Como disse numa
postagem de fim de ano no Facebook: subidas e descidas, vai e vens. É lógico
que o meu barco balançará algumas vezes; mas acreditar que seremos capazes de
driblar os obstáculos e as instabilidades da vida me faz ter vontade de
continuar caminhando. Nisso, a fé tem um papel importante em minha vida: é ela
a assinatura, o compromisso, a lavragem que me dá lastro, fôlego e vontade.
Mas a fé não é nada sem o amor. Quem tem fé e não ama, não tem fé de
verdade. É preciso amar as coisas, as pessoas, as escolhas; é preciso amar a
fé. Esse “ser preciso” não é algo que possamos aprender ou nos resignarmos; o
amor vem de dentro. Posso aprender a conviver, respeitar, compreender a até
desenvolver um certo gostar, adestrado, politicamente correto. Isso não será
suficiente; é só através do amor que somos capazes de sentir de fato a fé.
É isso aí: eu já fui descrente desse mundo. E ao encontrar o meu amor,
descobri o que é a Felicidade. Não apenas o amor pelo outro; mas o amor por mim mesmo.
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