Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Friday, January 11, 2013

MINHA NEGRITUDE.




                                                   * foto de Michael Maldanis

“Um sorriso negro
Um abraço negro

Traz felicidade

Negro sem emprego, fica sem sossego 

Negro é a raiz da liberdade”
(“Sorriso Negro”)

Nasci e cresci numa família branca. Vivi quase minha vida inteira num bairro onde negros eram minoria. Cresci ouvindo frases horrendas de alguns familiares sobre negros e coisas que os negros faziam “errado”. “Piadas” que pelo menos não se houve mais hoje em dia. Um de meus melhores amigos na escola era um negro. Tinha o mesmo nome que eu. Era meu companheiro na escola, dividíamos lanches e brinquedos, voltávamos no mesmo ônibus escolar. Não sei se por ser negro ou por ser um amigo “próximo demais”, minha convivência com ele, como outras, foi interrompida. Teria sido a convivência com ele, na cabeça sonsa de alguns, um risco para meu desvio do caminho reto? Até hoje procuro seu nome por aí.

Toda essa “brancura” não impediu de fazer crescer a minha “negritude”. Sei lá de onde vem.  É lógico que a negritude vem colada na Bahia, mas essa ligação que é, no mínimo, anterior a ela, ao menos nessa vida cronológica, é um fato da minha existência. Todo mundo sabe que (nós brasileiros) somos reis em dizer que “não temos preconceitos”, mas creio que ainda precisamos revisitar essa ladainha por séculos ainda para atingir uma certa maturidade “racial”. E o preconceito extravasa nos momentos mais descontraídos. Certo dia conversava com um grupo num restaurante; contava sobre uma amiga que teve sua casa assaltada, provavelmente pela sua faxineira (digo pelas evidências, não pelo “cargo”) e uma das pessoas do grupo perguntou: “Ela era preta?”. Esse “preta” me paralisou. Não era o “venha ver o preto que você tanto gosta” na boca de Dona Canô para Caetano, falando sobre Gil. Era um desrespeitoso “preta” associando a cor ao degenerado, ao excluído. Eu respondi, perplexo: “Não, não era.” E implícito, um vai-tomar-no-seu-cu-sua-ignorante.

Estranho momento esse que estou vivendo e decidi compartilhar. Passei uns dias em Salvador entre Natal e Ano Novo. Isso faz obviamente que minha negritude fique “recarregada” por mais tempo. Tive a oportunidade de ir a um ensaio do Olodum, no Pelourinho. Confesso que fiquei um pouco frustrado, porque a minha expectativa estava um pouco alta. Explico: o batuque é fantástico, mas a “minha” estética suprimiria a cantoria e deixaria somente o batuque. Pra mim, a maior parte das músicas “rouba” a magia daquela batucaiada toda. Para além do batuque, o que mais me impressionou foi o “orgulho negro”. Achei incrível quando um dos cantores agradeceu a presença de todos, em especial para as comunidades que prestigiam os ensaios durante todo o ano. Depois presenciei uma cena forte: um esbarrão de um branco com dois ou três negros e puft! Foi-se o copo de cerveja do branquelo ao chão. Ele se armou todo para xingar e esbravejar, mas deu de cara com a negada toda olhando para ele, olho-no-olho. Sem uma palavra, ele baixou a cabeça e continuou andando. Quem tem cu, tem medo, como dizem. Provavelmente, o turistinha branquelo, que vai rebolar sua alvura no carnaval de Salvador, teria uma outra atitude se estivesse em outro lugar. Diria impropérios, arrumaria confusão; mas ficou acuado porque não estava em seu território. A outra cena forte foi no banheiro. Um vexame para os brancos todos. Confesso que fiquei constrangido ao ver tudo aquilo; ao ver aqueles negros todos botando seus paus pra fora no mictório. Impossível não olhar. E acho que eles até facilitam, não por laivos de homoafetividade, mas por instinto, por orgulho. Eu teria orgulho.

Cheio de baianidade, negritude e “macumbaria” correndo solta em minha alma, ganho de presente de meus amigos baianos um livro interessantíssimo, “O poder dos candomblés”, de Edmar Ferreira Santos, que conta a história do Candomblé de Cachoeira e toda sua relação com a escravidão e a exclusão social dos negros através do repúdio à religião. Naquele tempo, onde o politicamente correto ainda não havia, jornais falavam claramente sobre a necessidade de banir com as “coisas dos pretos” da sociedade brasileira em favor de uma europeização “urgente”. Fiquei alegre por ter recebido um tesouro desses, mas fiquei triste ao refletir o tanto de injustiças que foram cometidas contra os negros. O mundo indeniza orgulhosamente os sobreviventes do holocausto e as famílias das suas vítimas, enquanto batemos cabeças com míseras cotas raciais em universidades públicas. Esse mesmo mundo observa a África se esvaindo em sarampo, desidratação, cólera e AIDS.

 
Instintivamente começo a ler um livro que havia começado uns tempos atrás, mas que a rotina e os estudos me fizeram adiar: “Sangue de mim”, de Polyana Almeida Ramos, uma grande revelação na literatura brasileira. O lindo romance fala, entre outras coisas, sobre a transição da nossa sociedade em tempos de Abolição. De novo o mesmo sentimento: alegria, satisfação por ter a oportunidade de ler tão bela obra e ao mesmo tempo uma profunda tristeza, um “banzo” para soar mais “negresco” por toda a dor e todo o desrespeito imposto a esse povo.



E eu não sei se termino por aqui essa negra sincronicidade, mas hoje assisti o filme de Tarantino, “Django unchained”. Novamente, o mesmo assunto, logicamente de um jeito todo Tarantino de contar as histórias. Falar de escravidão no sul dos Estados Unidos, tão cruel, tão pesada e com consequências tão trágicas para o povo negro quanto no Brasil. E o sentimento é o mesmo. Fiquei extasiado ao ver a evolução de Tarantino, coisa que já tem acontecido em obras anteriores: “yes, nós temos violência”; mas ela serve para contar histórias delicadas e vingar o oprimido e o injustiçado. Mas é tão triste pensar que uma gente tão linda, com seus corpos exuberantes e cheios de vigor, oriundos de terras outrora – e ainda hoje -  tão ricas culturalmente tenha passado e ainda passe por tantas desgraças e sofrimentos.


Recentemente tomei contato com a existência de um coral afro em São Paulo – o Coral Luther King. Bizarrices da cidade, o coral ensaia e se apresenta em grande parte na capela do Colégio Sion. Um lindo trabalho de resgate da cultura negra de várias partes do mundo, passando pelo Brasil, pela África e pelos diversos países onde a cultura negra faz morada.

 
Em tempos dos cinquenta tons de cinza que entristecem a nossa cultura, que nada acrescentam e que só enriquecem a quem vende essas baboseiras, a alma brasileira vai ficando mais escura. Esse patchwork de raças, cores e credos que compõem nossa sociedade é algo muito mais rico e engrandecedor do que todo o lixo pseuso-culto que nos enfiam goela abaixo. Eu estou fazendo o caminho contrario de Michael Jackson: estou enegrecendo. E alma preta não é morta, nem podre, nem maléfica. O preto é a cor dos iniciados nas grandes seitas esotéricas. Alma preta é alma profunda. 

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