MINHA NEGRITUDE.
* foto de Michael Maldanis
“Um sorriso negro
Um abraço negro
Traz felicidade
Negro sem
emprego, fica sem sossego
Negro é a raiz da
liberdade”
(“Sorriso Negro”)
Nasci e cresci numa família branca. Vivi
quase minha vida inteira num bairro onde negros eram minoria. Cresci ouvindo
frases horrendas de alguns familiares sobre negros e coisas que os negros
faziam “errado”. “Piadas” que pelo menos não se houve mais hoje em dia. Um de
meus melhores amigos na escola era um negro. Tinha o mesmo nome que eu. Era meu
companheiro na escola, dividíamos lanches e brinquedos, voltávamos no mesmo
ônibus escolar. Não sei se por ser negro ou por ser um amigo “próximo demais”,
minha convivência com ele, como outras, foi interrompida. Teria sido a
convivência com ele, na cabeça sonsa de alguns, um risco para meu desvio do
caminho reto? Até hoje procuro seu nome por aí.
Toda essa “brancura” não impediu de fazer
crescer a minha “negritude”. Sei lá de onde vem. É lógico que a negritude vem colada na Bahia, mas essa
ligação que é, no mínimo, anterior a ela, ao menos nessa vida cronológica, é um
fato da minha existência. Todo mundo sabe que (nós brasileiros) somos reis em
dizer que “não temos preconceitos”, mas creio que ainda precisamos revisitar
essa ladainha por séculos ainda para atingir uma certa maturidade “racial”. E o
preconceito extravasa nos momentos mais descontraídos. Certo dia conversava com
um grupo num restaurante; contava sobre uma amiga que teve sua casa assaltada,
provavelmente pela sua faxineira (digo pelas evidências, não pelo “cargo”) e
uma das pessoas do grupo perguntou: “Ela era preta?”. Esse “preta” me
paralisou. Não era o “venha ver o preto que você tanto gosta” na boca de Dona
Canô para Caetano, falando sobre Gil. Era um desrespeitoso “preta” associando a
cor ao degenerado, ao excluído. Eu respondi, perplexo: “Não, não era.” E
implícito, um vai-tomar-no-seu-cu-sua-ignorante.
Estranho momento esse que estou vivendo e
decidi compartilhar. Passei uns dias em Salvador entre Natal e Ano Novo. Isso
faz obviamente que minha negritude fique “recarregada” por mais tempo. Tive a
oportunidade de ir a um ensaio do Olodum, no Pelourinho. Confesso que fiquei um
pouco frustrado, porque a minha expectativa estava um pouco alta. Explico: o
batuque é fantástico, mas a “minha” estética suprimiria a cantoria e deixaria
somente o batuque. Pra mim, a maior parte das músicas “rouba” a magia daquela
batucaiada toda. Para além do batuque, o que mais me impressionou foi o
“orgulho negro”. Achei incrível quando um dos cantores agradeceu a presença de
todos, em especial para as comunidades que prestigiam os ensaios durante todo o
ano. Depois presenciei uma cena forte: um esbarrão de um branco com dois ou
três negros e puft! Foi-se o copo de cerveja do branquelo ao chão. Ele se armou
todo para xingar e esbravejar, mas deu de cara com a negada toda olhando para
ele, olho-no-olho. Sem uma palavra, ele baixou a cabeça e continuou andando.
Quem tem cu, tem medo, como dizem. Provavelmente, o turistinha branquelo, que
vai rebolar sua alvura no carnaval de Salvador, teria uma outra atitude se
estivesse em outro lugar. Diria impropérios, arrumaria confusão; mas ficou
acuado porque não estava em seu território. A outra cena forte foi no banheiro.
Um vexame para os brancos todos. Confesso que fiquei constrangido ao ver tudo
aquilo; ao ver aqueles negros todos botando seus paus pra fora no mictório.
Impossível não olhar. E acho que eles até facilitam, não por laivos de homoafetividade,
mas por instinto, por orgulho. Eu teria orgulho.
Cheio de baianidade, negritude e
“macumbaria” correndo solta em minha alma, ganho de presente de meus amigos
baianos um livro interessantíssimo, “O poder dos candomblés”, de Edmar Ferreira
Santos, que conta a história do Candomblé de Cachoeira e toda sua relação com a
escravidão e a exclusão social dos negros através do repúdio à religião.
Naquele tempo, onde o politicamente correto ainda não havia, jornais falavam
claramente sobre a necessidade de banir com as “coisas dos pretos” da sociedade
brasileira em favor de uma europeização “urgente”. Fiquei alegre por ter
recebido um tesouro desses, mas fiquei triste ao refletir o tanto de injustiças
que foram cometidas contra os negros. O mundo indeniza orgulhosamente os
sobreviventes do holocausto e as famílias das suas vítimas, enquanto batemos
cabeças com míseras cotas raciais em universidades públicas. Esse mesmo mundo
observa a África se esvaindo em sarampo, desidratação, cólera e AIDS.
Instintivamente começo a ler um livro que
havia começado uns tempos atrás, mas que a rotina e os estudos me fizeram
adiar: “Sangue de mim”, de Polyana Almeida Ramos, uma grande revelação na
literatura brasileira. O lindo romance fala, entre outras coisas, sobre a
transição da nossa sociedade em tempos de Abolição. De novo o mesmo sentimento:
alegria, satisfação por ter a oportunidade de ler tão bela obra e ao mesmo
tempo uma profunda tristeza, um “banzo” para soar mais “negresco” por toda a
dor e todo o desrespeito imposto a esse povo.
E eu não sei se termino por aqui essa negra
sincronicidade, mas hoje assisti o filme de Tarantino, “Django unchained”.
Novamente, o mesmo assunto, logicamente de um jeito todo Tarantino de contar as
histórias. Falar de escravidão no sul dos Estados Unidos, tão cruel, tão pesada
e com consequências tão trágicas para o povo negro quanto no Brasil. E o
sentimento é o mesmo. Fiquei extasiado ao ver a evolução de Tarantino, coisa
que já tem acontecido em obras anteriores: “yes, nós temos violência”; mas ela
serve para contar histórias delicadas e vingar o oprimido e o injustiçado. Mas
é tão triste pensar que uma gente tão linda, com seus corpos exuberantes e
cheios de vigor, oriundos de terras outrora – e ainda hoje - tão ricas culturalmente tenha passado e
ainda passe por tantas desgraças e sofrimentos.
Recentemente tomei contato com a existência
de um coral afro em São Paulo – o Coral Luther King. Bizarrices da cidade, o
coral ensaia e se apresenta em grande parte na capela do Colégio Sion. Um lindo
trabalho de resgate da cultura negra de várias partes do mundo, passando pelo
Brasil, pela África e pelos diversos países onde a cultura negra faz morada.
Em tempos dos cinquenta tons de cinza que
entristecem a nossa cultura, que nada acrescentam e que só enriquecem a quem
vende essas baboseiras, a alma brasileira vai ficando mais escura. Esse
patchwork de raças, cores e credos que compõem nossa sociedade é algo muito
mais rico e engrandecedor do que todo o lixo pseuso-culto que nos enfiam goela
abaixo. Eu estou fazendo o caminho contrario de Michael Jackson: estou enegrecendo.
E alma preta não é morta, nem podre, nem maléfica. O preto é a cor dos
iniciados nas grandes seitas esotéricas. Alma preta é alma profunda.
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