Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Sunday, May 15, 2011

A INSTANTANEIDADE DA VIDA


A vida é efêmera. Somos uma folha de papel. Esse mundo é esquisito mesmo. Nascemos, crescemos, nos multiplicamos ou não. Fazemos um montão de coisas pra morrer no final. Podemos pensar nos propósitos maiores, na vida após a morte, nas reencarnações, nas missões evolucionárias; tudo acaba nos fazendo pensar, crer, aceitar, desejar, aspirar, algo maior que a própria vida terrena. O fato é que estamos vivos, precisamos da vida, queremos a vida. E vivemos num mundo de coisas. Queremos essas coisas. Queremos amores, sabores, dinheiro, objetos, construímos sonhos e alimentamos desejos terrenamente deliciosos.

Hoje, na hora, do almoço, saboreando um delicioso polvo com batatas assadas com meus amigos, conversávamos sobre o tédio dos mundos conservadores e dos radicalismos alimentares. Devo ser pouco evoluído. Gosto de carne de porco, sorvete de chocolate, bebo café várias vezes ao dia, babo por um Marlboro vermelho. Sou um vegetariano part-time e me poupo na hora do almoço para comer torresmo e chocolate à noite, ou pizza, ou salsicha, ou sopa de queijo, ou hambúrguer. Qualquer coisa dessas que não leva ninguém para o céu dos yogues. Não estou criticando nem vegetarianos, nem yogues. Desde que sejam verdadeiramente o que pregam.

Tenho um primo distante que se dizia vegetariano. Daqueles radicais. Nada de proteína animal. Adoçava os leites e cafés com mel em pasta (Eca!). Proibia seus filhos de comerem doces. Fazia pregações intermináveis sobre as toxinas da carne e da comida enlatada. Certo dia, veio a São Paulo para visitar a parentada. Encontrou-nos num clube do qual éramos sócios e, de repente, desapareceu. De repente começaram a gritar lá do restaurante do clube. Um homem – o meu primo – havia desmaiado de tanto comer. Picanha. Linguiça. Torresmo. Feijoada. Foi parar no hospital e quase morreu de congestão. Recaída selvagem de um vegetariano pseudo-purista.

É claro que a proposta dessas escolhas é de um viver saudável. Comida saudável, atividade física, nada de vícios ou abusos. Eu não sei se suportaria. Sou vidrado em cheiros, gostos, sabores. Durmo pensando em qual será o maravilhoso almoço de amanhã; compro Häagen-Dazs no sábado para comer no final de domingo; planejo meus jantares, meus cafés da manhã, minhas sobremesas. A minha vida é toda processada através do estímulo aos meus sentidos, sobretudo o paladar.

Tenho que admitir que, vez ou outra, saio correndo atrás de uma certa “redução de danos” e me imponho alguns sacrifícios com o objetivo de diminuir os riscos, os pesos, os problemas ligados a um viver tão prazeroso. Faço um tiquinho de ginástica, largo o cigarro, como menos doces durante a semana. Mas não penso mais em ficar magrelo, musculoso, “saudável”, simplesmente porque considero uma troca injusta demais para aceitar.

Estou falando de comida, de orgias gastronômicas, de prazer à mesa. Mas tudo o que pode dar prazer pode ser incluído nessa lista. O que eu quero dizer é que eu vivo a vida. De vez em quando vem algum chato e diz: “Nossa, você engordou, hein?”. Antes isso me deixava triste, chateado. Hoje eu respiro fundo, conto até três, abro um sorriso e respondo: “É a vida boa. Eu sou feliz. E a minha felicidade é do tipo que engorda.”

Quando era mais jovem, tinha um tio que me falava a mesma coisa toda vez que nos encontrávamos: “Porrra, meu, você tá cada vez mais gordo! Onde vai parar desse jeito?” Eu ouvi esse comentário uma meia dúzia de vezes, sorria sem graça, não querendo dizer aquela resposta que eu havia decorado desde a primeira vez que ele me disse isso. Mas um dia o escorpião saiu da toca e ativou seu módulo serpente: “Eu não me incomodo com isso. Até porque eu posso dar um jeito, eu posso emagrecer. Agora você não tem jeito, porque além de feio, é velho.” Isso me custou um empurrão e um desaforo do meu velho pai, que se incomodou com a ofensa ao amigo dele, coisa já esperada. O tio, saudável, esportista, esbelto (mas feio), morreu. E eu continuo gozando a vida e da cara dele.

Muita gente deve pensar: “Pobre gordo. Fica aí justificando a própria obesidade e não faz nada para mudar.” Respeito a opinião alheia. Quem me conhece de verdade saberá dizer o quanto tem de felicidade em minha vida. Eu, que um dia quis morrer precocemente, hoje agradeço continuar vivo e espero assim continuar por muitos e muitos anos. Mas se Deus, ou o Destino, ou a Morte, ou quem quer que os represente, decidir que chegou minha hora, eu não titubeio em dizer que morreria feliz.

Estou falando da Morte porque ela tem rondado ultimamente. Não a mim, mas os meus. Morre um aqui, outro ali; gente jovem, doente, em estado grave, em leitos de hospitais; gente sofrendo dores terríveis; gente que perdeu as esperanças. É nesse momento que me pego pensando em como somos nada. Folhas de papel; folhas ao vento; papéis de seda; frágeis; vulneráveis. Somos tudo, a todo vapor, em plena força e vigor num momento e nos tornamos um nada absoluto numa fração de segundo. Do tudo que somos, podemos virar pó a qualquer instante.

E quando vejo a Dona Morte, caminhando por aí, arrastando sua foice e balançando sua capa no vento, sinto-me mais forte, mais vivo e com mais fome. Fome de comida, de guloseimas e de vida. Fome. Não aquela fome voraz, igual quando termino o dia de trabalho e resolvo ir ao supermercado e acabo gastando o dobro do previsto, porque meus olhos gulosos e minha barriga vazia ordenam que eu compre tudo que veja pela frente. Não essa. Falo da fome programada, ajeitada, que chega aos poucos, que cresce ao sentir o cheiro e ao ver as cores da comida. Dessa que faz a gente querer sentar na mesa por horas, que deixa vontade de lamber o prato e ainda beliscar mais um pedacinho da comida que está lá, esfriando.

Fome do banquete da vida. E como todo banquete, a vida tem que ser completa. De amor, de amigos, de carinho, de perdões. Pode ter seus percalços, como quando deixamos queimar o molho, ou arrebentamos o pudim ao desenformá-lo, ou queimamos as mãos no fogo. A vida é uma cozinha experimental. Conhecemos os ingredientes, mas não a receita. Cada “prato” vem da Alma.

Sim, eu já queimei comidas, quebrei pratos, azedei molhos. Na cozinha e na vida. Mas continuei experimentando. E repito o constante exercício de aprender a jogar fora os bolos queimados, os molhos azedos e a passar pomadas e água gelada nos dedos queimados. Podemos errar e tentar acertar infinitas vezes. Mas é difícil recuperar um bolo queimado.

E hoje, nessa “cozinha”, aprendi mais uma lição: podemos errar, podemos nos entristecer, mas é o sorriso, a alegria que vem da Alma que nos fortalece para continuar seguindo.

2 Comments:

Anonymous Ney said...

"Cada prato vem da alma", nunca havia pensado nisto antes...e você me deu de presente esta constatação!Sabe, num dia de terapia, disseram-me:faça de seus
sentimentos algo artístico;
aceitei o conselho e tempos depois reapreendi a sorrir.Parece que a "mágica" é esta, não importa tanto o resultado(se de fato se fez obra de arte), mas o próprio fazer, fazer com a alma, entregar-se ao ato e, como recompensa, nos virá o riso e a justificativa do tempo gasto nisto: "valeu", porque se
estava ocupado experimentando, tentando fazer bem feito, mesmo se
o resultado desaponte...como um chocolate com trufas negras mixuruca.Bom, agora que já "pousei" de filósofa, vamos ao que importa:
gostei do texto, tem clareza na
construção do discurso, na exposição da idéia, bom equilíbrio entre o sério e o agradável para conduzir e prender o leitor e um
"tamanho" certo, nem longo, nem curto demais. Obrigada pelo prazer
de lê-lo!
NeyMaria

2:10 PM PDT  
Blogger Unknown said...

Ogrigado! Adoro seus comentários, seja filósofa, psicóloga, ser humano...

4:59 PM PDT  

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