A MORTE QUE PODE SER BOA: REFLETINDO SOBRE A NOSSA SENHORA DA BOA MORTE.
Dizem que Xangô tem medo da morte. Dizem
que até abandona seus filhos e entrega-os aos cuidados de outro Orixá quando a
morte deles se aproxima. Esse deve ser um dos motivos pelos quais a morte me
apavora. Não me apavora em si a idéia de morrer, a finitude, o meu fim. Acho
que me assusta a idéia da morte do outro, de ver o outro morrendo, de perder o
outro. E isso, Freud e Xangô explicam. Perdi minha avô aos três anos de idade e
aos cinco, meu avô foi embora de casa para morar com sua outra família. Perdi,
na tenra idade, meus verdadeiros pais e esteios para viver no mundo. Essas
perdas deixaram marcas profundas na minha personalidade e um importante reflexo
dessas marcas é a minha evitação da morte.
Sim, eu evito a morte. Ajudo amigos, apoio
pessoas que precisam, mas basta a doença e a iminência da morte chegarem, minha
alma paralisa. Rezo pelos doentes e moribundos, mas não consigo ir visitar
alguém num hospital. Nunca assisti a um enterro e vi apenas alguns velórios.
Para dar pêsames a alguém, só depois de muito tempo da morte, porque falar da
morte me dói. Sou péssimo companheiro nos momentos da dor da perda, porque sou
capaz de chorar mais que o próprio enlutado. Choro nos filmes onde morrem as
pessoas; sim, choro em todos.
E, pensando nas horripilâncias que a morte
me causa, parei para pensar no motivo pelo qual fui buscar a morte numa festa
popular baiana. Descobri a Festa da Nossa Senhora da Boa Morte na internet,
pesquisando, há cerca de um ano, equivalentes nacionais para a Santa
Muerte mexicana, para fazer uma postagem num momento em que várias pessoas
queridas estavam perdendo familiares. E acabei encontrando essa linda festa, em
Cachoeira, no Recôncavo Baiano, organizada há cerca de 200 anos por uma
Irmandade fundada por negras alforriadas, com o principal objetivo de zelar
pelo enterro nos negros escravos.
A parte religiosa da festa tem duração de
três dias. No primeiro dia, a anunciação da morte, ocorre o cortejo com
procissão da Nossa Senhora Adormecida pela cidade, saindo da Igreja da Ajuda
até a Igreja da Irmandade, entoando hinos religiosos em louvor a Nossa Senhora,
em homenagem às antigas Irmãs falecidas. Nesse dia, elas saem de branco,
carregando castiçais iluminados. No segundo dia, ocorre o cortejo fúnebre e as
Irmãs saem vestidas com bata branca e torço branco, longas saias negras
plissadas e um xale preto e vermelho. Esse é o dia do verdadeiro luto, ao som
de marchas fúnebres com a fanfarra da cidade. No terceiro e último dia, ocorre
a Assunção de Nossa Senhora, levada aos céus por Jesus. As irmãs saem de
vestidas das roupas típicas das baianas, mas pretas, com o lado vermelho dos
xales à mostra, guias, contas, pérolas, anéis e pulseiras. A Assunção da Nossa
Senhora da Boa Morte é o desfecho desejado: encontrar o caminho de um feliz
descanso nos braços do Cristo.
Em cada dia de festa, as Irmãs ofertam aos
fiéis um prato diferente: uma oferenda a cada dia da semana: pão, peixe e vinho
no primeiro dia, feijoada, cozido, caruru e por aí vai. A parte profana da
festa é o Samba de Roda, conduzido pelas irmãs, na Irmandade, em suas casas.
Mas esse ano a parte profana não ocorreu, pela morte da irmã mais velha,
denominada a Juíza Perpétua da Irmandade. Aos 106 anos, abriu seus braços para
a Boa Morte uma semana antes da Festa. E, como disseram todos os habitantes da
cidade, estávamos num momento muito especial, porque aquele era um luto
verdadeiro e não apenas uma representação alegórica numa festa. Mas, mesmo que
ela não tivesse morrido, o símbolo da Morte, do Luto, estava lá. E isso me fez
realmente pensar sobre o luto.
Estranho que, alguns dias antes, na viagem
de New York a São Paulo, conversava com a minha irmã sobre a morte: de quem
iríamos cuidar, quem iria cuidar de mim quando eu estivesse muito velho, meu
desejo de ser cremado e minhas cinzas jogadas em qualquer lugar, no mar, no
mato, numa samambaia. Era a Boa Morte anunciando sua chegada.
Nos últimos anos, tenho reafirmado meus
votos com minha religiosidade, com minha fé e tenho percorrido, passo a passo,
uma estrada de reconciliação com as coisas espirituais. Mas, logo atrás dessa
religação, vou religando os fios que me distanciavam das coisas reais da vida e
da família, desatando nós, compreendendo coisas, descobrindo outras. Eu ainda
não sei definir se meu esclarecimento é mais espiritual ou mais psicológico; só
tenho a certeza de que tem um pouco de cada coisa, se é que são de fato coisas
diferentes. E nesse cortejo, nesse passo a passo por uma cidade tão antiga
quanto o próprio Brasil, sou capaz de me reconciliar com a Morte. Sou capaz de
chorar as perdas, daqueles que morreram, dos amigos que partiram, pedir para
aqueles que sofrem suas aflições poderem usufruir da dádiva de morrer em paz. Deixar
a espírito da Boa Morte invadir minha alma, enterrar as dores, as mágoas, as
dúvidas e as dívidas.
Eu ainda não sei direito o que sobra em mim
depois de deixar a morte morrer bem. Um boa morte é aquela em que se morre de
verdade, podendo renascer para uma nova vida, que não precisa ser eterna, mas
que pode ser considerada eterna, ao passo que somos eternos andarilhos,
caminhando de encontro à morte desde o primeiro dia que chegamos ao mundo. Estou triste. Estou de luto. Vai um
pedaço de mim nessa morte; e nesse “gap”, nesse “mourning”, fica um vazio, um
sei-la-o-quê, até se anunciarem as boas novas.
2 Comments:
Nossa, estou incrivelmente impactada pelo teu texto; você imprimiu uma força, uma grandeza e uma sensibilidade ímpares. Como estou emocionada e feliz ao mesmo tempo com este texto. Eventos como este me levam a crer que neste mundo ainda há muita coisa a surpreender. E, da maneira lírica com que você conduz o texto, alegra-me ter a oportunidade de ler dezenas de vezes palavras que juntas soam tão vivas que nascem e nos absorvem. Parabéns pelo texto!
Poly, obrigado! Pra mim é uma honra "ouvir" isso de você! Bjs!
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