Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Friday, July 30, 2010

A MENINA E O BAIACÚ


Tenho muitas histórias memoráveis sobre essa minha amiga. O fato é que, recentemente, lembrei dessa história ao falar com ela, relembrando um tempo bom, gostoso, mágico.

Certa vez viajamos juntos. Fomos a uma praia no sul no país. Chovia muito durante os dias que ficamos lá, mas nos divertimos muito assim. Certa noite fomos a uma festa. A festa prometia. Boca-livre, banda animando, jantar, bebidas e doces. E no embalo desse sábado à noite, decidimos ver o nascer do Sol na praia.

Ao sair da festa, levamos duas garrafas de vinho a tiracolo. Ao sairmos do local, notamos que os seguranças não permitiam que os convidados levassem bebidas da festa. Nem água, nem guaraná. Vinho, muito menos. Foi então que uma outra amiga teve a brilhante idéia de “embalar” as garrafas em seu xale. E assim fomos, nós três, saindo pela porta da frente com os “gêmeos”.

Fomos pra praia e o nascer do Sol não era tão bonito. Mas ficamos lá, na areia, falando da vida, falando bobagens. Eu sentia muito frio, mas minha amiga estava radiante. Era como se aquela energia tênue do Sol que anunciava sua chegada invadisse seus poros, seu coração e sua mente. Eu tremia de frio e pedia pra irmos embora, mas ela caminhava pela praia, pulava as ondas, como fazem as ondinas, sereias e janaínas a festejar a beleza e os encantos do mar.

Essa cena nunca saiu da minha cabeça. Quando sinto saudades dela, lembro daquele sorriso-criança, daquela alegria. Sentia uma inveja boa daquele alegrar-se com aquele momento tão simples.

Após esperarmos tanto pelo Sol, ele não apareceu. Veio apenas a chuva e uma névoa o escondia bem diante dos nossos olhos. Fomos embora e, alguns kilômetros depois, encontramos uma lagoa. Era o presente de Deus por termos esperado tanto. A lagoa estava ali, iluminada pelos raios do Sol, refletindo feixes multicoloridos bem diante dos nossos olhos, criados pela dança do Astro-Rei com os pingos da chuva. Dentro da lagoa um velho pescador jogava sua rede.

Como a vida me ensinou que não podemos desprezar os presentes que Deus nos envia, descemos do carro pra ficar um pouco mais. Chegamos perto do pescador e em sua rede havia caranguejos, camarões, peixes diversos e…um baiacú. Minha amiga se encantou com ele. Como ele inchava, fcando robusto, bochechudo, brilhante com os raios do Sol e, após algum tempo, ficava tão fino como qualquer peixe.

E então ficamos lá por um tempo incontável. Ela observava e se admirava, como uma criança a descobrir o mundo. Não vou dizer que amei aquele momento enquanto ele acontecia. Estava exausto, não via graça naquela brincadeira, tampouco naquele baiacú. Quando conseguimos ir embora, voltamos pra casa e dormimos muito. Ao acordarmos, rimo-nos tanto daquela cena, que ela ficou marcada em minha memória.

Ainda hoje, quando penso em minha amiga, quando falo dela pras outras pessoas, relembro e conto essa história, porque ela deixa viva a imagem de alguém com um coração puro e uma alma de criança, que sabe valorizar as pequenas belezas da vida e da natureza, mesmo em um baiacú. E, ao pensar nisso, não sei se o maior presente de Deus foi mesmo o nascer do Sol ou se foi a oportunidade de ver uma mulher sorrir como criança, bem diante de mim.

E as pessoas que lêem isso agora podem perguntar: qual é o sentido de falar sobre isso aqui? Qual é o tabu? E eu respondo. É pra falar das coisas que nos reprimimos, pela “educação” que recebemos, pelas convenções sociais, pelo preconceito. O tempo vai passando e esquecemos de ser crianças, esquecemos de brincar com as crianças que moram em nosso peito.

Deixamos de comer frango com a mão e passamos a “pedir filé grelhado” nos restaurantes. E é claro, somos obrigados a deixar de chupar os suculentos ossinhos de frango. Deixamos de comer pipoca doce, aquela das portas de teatros e metrôs, porque não pega bem ficar com aquele corante vermelho na língua e nos dedos por horas. Jogamos fora nossos brinquedos, mesmo aqueles que nos trazem recordações belas da infância. E quando fazemos isso a criança morre mais um pouco.

Falo de tudo isso pra lembrar do tabu que existe em continuarmos sendo crianças. Não o tempo todo, mas quando queremos, quando precisamos. Existem momentos na vida em que a criança em nós precisa chorar ou sorrir pra lembrarmos o quanto estamos vivos.

Saturday, July 24, 2010

ME GULLIVER! (Ou: o que fazer com baixinhos pentelhos?)


Quando era pequeno assistia as histórias de Gulliver. Lembro quando ele passava por apuros em Lilliput, uma terra imaginária de pequeninos seres de quinze centímetros vestidos em roupas medievais. Ele, sempre charmoso, galanteador e perspicaz, lidava com aqueles pequenos habitantes de forma sábia, paciente e, às vezes, violentamente, quando se cansava da teimosia deles.

Um falecido tio meu dizia que “os baixinhos são sempre muitos chatos e só servem para peidar em festas”. Não sei dizer se ele tinha tanta razão assim, mas talvez Gulliver compartilhasse dessa opinião em alguns momentos.

E, como Freud, Gulliver fez história e Lilliput deu origem a um adjetivo até hoje utilizado, o termo lilliputiano, que diz respeito a algo muito pequeno. Nunca tinha ouvido falar nisso, até um dia em que, num semnário da residência médica, sobre delírios e alucinações, escutei o termo “alucinações lilliputianas”, caracterizadas por visões de pequenos seres, humanos ou animais, em homenagem às histórias de Gulliver e, pasmem, geralmente produzidas por intoxicações por drogas alucinógenas.

Isso não foi só um aprendizado teórico, mas o “insight” de uma vivência passada e a constatação de suas causas, fatos esses que havia escondido de mim mesmo e dos outros, por medo da loucura, do ridículo e da incredulidade. Fato é que um dia, nos idos tempos de 1992, fiz minhas vezes de Gulliver…

Era outubro de 1992, estava no primeiro ano da faculdade. Fantasiado de chinês, fui à tal Festa do Equador, tradicional festa à fantasia organizada por alunos da faculdade. Lembro como se fosse hoje que não havia bebido muito. Dava pra contar nos dedos da mão as coisas que bebi: um Alexander na entrada, uma caipirinha de vodka após e dois ou três goles de cerveja de uma amiga na pista de dança. E nada mais. Após brincar de coqueteleira, dançando na pista, senti minha cabeça rodar. Rodava tanto, mais tanto, que nem deu tempo de chegar ao banheiro: vomitei embaixo da mesa mesmo. Senti-me um pouco melhor, mas ainda me sentia estranho, zonzo, enjoado… Fui para casa, deitei na cama e a única coisa que me lembro antes de adormecer foi de ter colocado o relógio para despertar para ir à faculdade.

Acordei zonzo, estragado mesmo. Olhei para o teto, que rodava um pouco e as frestas da janela traziam os incômodos raios de sol, que me invadiam como lasers… Baixei a cabeça e, ao meu redor, diversos homenzinhos e mulherzinhas de quinze centímetros, trajando roupas medievais punham-se ao meu redor, em cima do edredon, do meu travesseiro, apoiados em meus braços e pernas… Não, eu não estava sonhando. Nem estava delirando com cogumelos, como Fred Mercury (“We are the champignons”). Definitivamente eu estava em Lilliput, ou ela toda tinha vindo até mim.

- Quem são vocês? – perguntei

E eles todos respondiam, em uníssono, com vozes ardidas e enfáticas:

- Nós estamos aqui para te ajudar! Nós vamos cuidar de você!

Sentindo-me acuado e em perigo, ergui-me na cama, derrubando alguns deles…

- Não.. eu preciso sair, tenho que ir para a facul….
- Nããããããoooooooooooo!!!! Você não vaaaaaaaaaaaiiii-
- Responderam em côro, atirando meu corpo contra a cama novamente – Nós vamos cuidar de você! Você precisa descansar!!!!!
- Está bem, está bem… eu desisto..eu fico!
- Oba!!!!! Conseguimos!!!!!

E não lembro de mais nada. Após essa tal discussão com esses seres adormeci profundamente e ali fiquei por mais algumas horas. Acordei atrasado, fui para a faculdade me arrastando, como se tivesse na pior ressaca da minha vida… E enfim, só fui me dar conta do que havia acontecido comigo naquele outubro de 1992 cerca de oito anos após…

Resta a dúvida: quem me drogou? E com o quê? E como? Estaria naquela maldita cerveja ou nos drinques anteriores? Tenho certeza até hoje de que não foi um sonho. Eles eram vívidos, mas com cores de desenho animado. Não posso dizer que foi desagradável, mas sem dúvida, misterioso, intrigante. Eles nunca mais voltaram, nem eu jamais visitei Lilliput de novo.

Uma coisa eu aprendi. Minha mãe tinha razão: não aceite nada de estranhos.

Tuesday, July 20, 2010

20 DE JULHO: DIA DO AMIGO


São cinco horas da manhã. Estou de plantão e perdi o sono. Cabeça cheia? Muita coca-cola? Ansiedade? Talvez algo disso, talvez nada disso, talvez um pouco de cada coisa. Passeando pela internet, pelo menos pelo que não está bloqueado pela “polícia cibernética” do hospital, descubro que hoje é dia do amigo. Dizem que aqui no Brasil, que gosta de ser diferente em tudo, esse dia é comemorado em 18 de abril, mas o resto do mundo comemora hoje.

E fiquei pensando nos amigos que tenho, nos amigos que tive, naqueles que desapareceram na poeira do tempo. Como é possível amarmos tanto algumas pessoas num certo momento e num outro elas deixarem de constelar algo importante em nossas vidas?

Passeando pela fita do filme do tempo, lembrei de alguns amigos: o Felipe, meu primeiro amigo, do pré-primário. Seus pais eram separados, seu avô era policial e tinha uma sirene instalada no seu Opala cor de vinho. Aos finais de semana, íamos ao Parque Ibirapuera andar de bicicleta e jogar bola. Passamos de ano e o Felipe desapareceu...Por onde andará?

Nos anos do primário, tinha um amigo xará. Marcelo. Passávamos o tempo todo juntos na escola e no ônibus de volta também. Na terceira série minha família mudou para Santo André e, com minha mudança, sumiu o Marcelo.

Em Santo André, estudava numa escola horrenda, chamada Quarup. Nome de índio, mas filosofia de nazismo. Odiava ter que viajar de perua escolar por lugares tão desconhecidos. Sentia-me estrangeiro naquela escola com hábitos estranhos. Mas fiz um novo amigo Marcelo. Um ruivinho simpático. Lembro que uma vez foi em minha casa estudar para a prova de Português. Passamos a tarde toda fazendo bichinhos de epóxi com seixos rolados e nada de estudo. Fomos mal na prova e, como presente de minha mãe, nunca mais pude ver o Marcelo. Seis meses depois mudamos novamente para São Paulo e, de novo, adeus amizade.

Nos anos que se seguiram, encontrei vários amigos e amigas legais, mas a pessoa à qual estive mais próximo foi minha prima Andrea. Éramos mais que irmãos. Chegamos a planejar uma fuga para vivermos “nosso amor impossível”. Seguimos inseparáveis até o fim do colegial. Acabou o colegial, acabou nossa ligação. Hoje somos dois estranhos que dividem um “fininho” de sangue comum nas veias.

Na vizinhança tive duas grandes amigas, a Thelma e a Thaís. Por muitos anos convivemos “grudados” e, numa das curvas da vida, nos perdemos. E assim foram tantos outros. Na faculdade, nos meus anos de Varig, na residência médica. Não tive nenhuma briga séria, ninguém morreu. Eles simplesmente desapareceram. Algumas dessas pessoas ainda vejo. Todas moram em meu coração.

Hoje tenho alguns amigos. Alguns são amigos-irmãos, outros amigos-primos, outros amigos-primos-de-segundo-grau. Uma de minhas amigas se assustou quando conversávamos sobre o que acontecia quando essas amizades se dispersam e eu disse que achava que, mesmo querendo muito bem certas pessoas, às vezes perdemos a sintonia, saímos de uma mesma freqüência e deixamos de conviver com elas. E ela me escreveu uma mensagem depois, dizendo que não gostaria que isso acontecesse conosco; não queria que deixássemos de possuir aquela “sincronicidade” tão invejada por outros. Eu também não quero que aconteça.

Sempre lamentei não ter amigos de longa data, ou ao menos de não vê-los mais. Sim, porque o Felipe, os Marcelos e todos os outros que passaram pela minha vida ainda são importantes porque fazem parte da minha história e guardo uma afeição por eles. Mas recentemente descobri que tenho sim uma “amizade de vida inteira”, há cerca de trinta anos: minha irmã Luciana. Por alguns momentos eu me esqueci disso; mas mais recentemente nos aproximamos e lembrei o quanto ela sempre foi importante em minha vida, desde o momento em que eu pedia a Deus que me desse uma “irmãzinha”; quando escolhi seu nome, porque era o nome de uma “namoradinha” da escola; quando fazia ela dormir,deitado com ela no cercadinho, cantando “Como é grande o meu amor por você”.

Eu não gosto menos dos meus amigos atuais do que gosto da minha irmã. A diferença é que ela é minha amiga há quase trinta anos. É a minha amizade mais antiga. Minha penúltima analista me disse uma das coisas mais bonitas que eu já ouvi de alguém: ela disse que desejei tanto essa minha irmã como alguém que eu pudesse amar e me sentir amado.

Dois dos meus maiores amigos em todo o universo já se foram. Meus avós, Izolina e Armando. Lógico que foram muito mais que amigos. Foram Pai e Mãe, ultra-maiúsculos. Foram meu chão, meu esteio, meu ninho, minha dadivosa referência de amor que tornou possível amar e ser amado ao longo da vida. Duas gotas d água num poço seco. Mas duas gotas tão plenas que puderam me abastecer ao longo de toda uma jornada de estiagem.

Às vezes me sinto como a personagem Vianne, interpretada por Juliette Binoche, no filme Chocolate: bate o vento, é hora de mudar de rumo. Ir pra outro lugar e deixar tudo pra trás. Sim, já fiz isso várias vezes. Casas, cidades, escolas, empregos. Mas as amizades não são deixadas para trás; são elas muitas vezes que mudam de endereço sem deixar notícias.

Há cerca de dois meses estava em New York. Não sei se foi exatamente no dia 20, mas eu me lembro ter tido um mal estar muito grande que me fez pensar que ia morrer. Agora sei o que sentem as pessoas com crises de pânico. Sentia uma agonia, um frio na espinha, um medo tão grande e, naqueles minutos que pareciam não acabar nunca, senti uma “onda de despedida” e senti vontade de pedir perdão às pessoas pelos meus erros e imperfeições, além de poder dizer o quanto as amava.

Felizmente o mal estar passou, mas restou uma espécie de iluminação, de consciência. Muita gente passou pela minha vida. Muita gente foi embora. Disso não tenho medo. Meu maior medo é não poder dizer o quanto cada pessoa que passa é importante, o quanto ela significa , o lugar que ela ocupa no meu coração.

Então a todos que se foram, aos que estão, aos que chegarão e aos que voltarão. Sejam sempre bem vindos no meu coração. Feliz Dia da Amizade, do Amigo, do Irmão.

Sunday, July 18, 2010

"EU QUERO SUCO DE PAU"






















“A Mancha no tapete parecia mingau
/ A Mancha no tapete parecia mingau
/ Mas não era mingau que que era pessoal / Era suco de pau/ Mancha!” (“Mancha”, Garotos Podres)

Não, não é o que vocês estão pensando. E é claro que essa é uma das funções desse blog: explicar confundindo e confundir explicando. Eu sou realmente fã desses trocadilhos de palavras, histórias e significados. E após ter ouvido essa frase que conta uma história que consiste num trocadilho em si, fiquei pensando neles, nos trocadilhos e como a vida seria sem graça sem eles.

Minha amiga contou que, quando era pequena, costumava passar as férias numa cidade do interior de São Paulo. Aqui em São Paulo tinha um modo de vida muito urbano, tendo sempre morado em apartamentos, estudado em escolas particulares e levada à escola por peruas escolares. Nada de verde, nada de rural. Pouco ia à feira. Assim que a memória permitiu resgatar a lembrar o momento em que se entendeu por gente, lembrou das suas férias no interior. Era lá que seu lado selvagem aflorava. Andar descalça, brincar na rua até tarde, correr no mato, nadar em rios e cachoeiras. Todo um universo de coisas às quais não estava habituada na cidade grande.

Além da selvageria toda, gostava da comida do interior. Gostava do ensopado de galinha caipira da avó, das saborosas pamonhas, do curau. Adorava pegar algumas moedinhas e comprar sorvete na praça. Várias vezes por dia ia até o sorveteiro, para experimentar um novo e curioso sabor: jaca, paçoca, amendoim, pé-de-moleque, milho com coco. E também os refrigerantes que, em São Paulo, só ouvia os mais velhos falar: Baré Cola, Tubaína...

Mas uma coisa nunca lhe saiu da cabeça. O dia em que seu avô a levou à Banca do Seu Zé. Era um barracão de zinco, enfiado entre outras casas velhas, bem ao lado da loja de armarinhos. No barracão não tinha quase nada, apenas um balcão velho de alumínio, um cadeira e uma mesa de fórmica. Em cima dela, uma maquina estranha, com um fio pendurado que levava a um disjuntor pendurado por um prego na parede. E lá vinha o seu Zé, trazendo um punhado de bambus esquisitos. Ligou a máquina, que fazia um barulhão e se pôs a enfiar aqueles bambus máquina adentro. E debaixo da máquina saía um liquido amarelo esverdeado, meio espumoso, que caía certinho na jarra embaixo dela. No meio dessa parafernália toda, Seu Zé olha para a menina e pergunta:

-E a moça, o que vai querer?

E ela, sem titubear, respondeu, com vigor:

-Eu quero SUCO DE PAU!

O velho levou um susto e depois caiu na gargalhada. Mais assustado ficou o pai dela, que deu uma beliscadela de leve em seu braço e corrigiu:

-Menina, olha o respeito! É garapa!

-Suco de pau, suco de pau, suco de pau! Eu quero, eu quero, eu quero!

-Para com isso ou vai ficar de castigo!

E Seu Zé lhe deu um pouco de garapa. Estava meio sem graça, porque não entendia porque os dois riam e ao mesmo tempo seu pai lhe repreendia. O fato é que adorou o suco de pau e demorou bastante tempo para conseguir decorar o nome da coisa: garapa. Suco de pau era bem mais fácil.

Chegando na casa da avó, entrou toda saltitante pela casa e foi correndo cumprimentar a velha. Vovó Emerenciana estava fazendo tricô com as comadres, lá no alpendre dos fundos.

- Olha quem chegou, como está moça! – disse a Dona Maricota.

- Por onde você andava? Por que demorou? – perguntou a avó.

- Meu pai me levou tomar suco de pau!

- Minha falha, não fala besteira! Toma jeito! – retrucou a veia.

- Suco de pau do Seu Zé! Uma delícia! É docinho e quentinho!

Tentou explicar que o Seu Zé pegava aquele pau bem duro, enfiava o pau na máquina, apertava com força e o suco saía, mas quanto mais explicava, pior ficava. Não entendeu nada. Levou foi um tapa da avó, pimenta dedo de moça na boca e ficou virada pra parede duas horas. Só depois de muita punição é que veio uma explicação. Entendeu que era proibido, mas não entendeu o porquê. Foi só muitos anos depois que aprendeu o que era “pau” na acepção libidinosa do termo e por conseguinte, o que era “suco de pau”.

Essa história de “suco de pau” me faz lembrar a minha infância. Lembro da minha estranheza quando ouvi os garotos mais velhos da escola vendo revistas pornográficas e falando em “comer a mulher”. Lembro ter perguntado para um deles como é que fazia pra comer a mulher, se era com garfo ou ia mordendo direto, e se a mulher continuava viva. Mais estranho ainda foi saber que, quando um homem comia uma mulher, podia nascer um bebê...

Isso tudo me fez lembrar uma canção do Serge Gainsbourg, que ficou famoso por aquela musica “Je t’aime... Moi non plus” (Eu te amo... Mas eu não mais), onde uma voz feminina se desmancha em declarações e gozos enquanto ele responde que não a quer mais... Ele compôs uma música chamada “Les Sucettes” (Os Pirulitos) que conta de um modo bastante pueril a relação de Annie com os pirulitos que gosta de chupar... Essa música foi gravada por France Gall e dizem as más línguas que eles romperam relações quando ela “descobriu” a verdade por trás da música.... É claro que quando ela descobriu a verdade nos pirulitos ela não tinha a idade de minha amiga quando descobriu a verdade do suco de pau.... Mas ingenuidade e insanidade são atributos que podem ser alegados a qualquer tempo da jornada...


Resolvi escrever sobre isso porque tinha que contar essa história, antes que algum humorista descobrisse e virasse piada de stand-up comedy. Agora está eternizada, aqui no meu blog. Mas escrever sobre a ingenuidade das crianças e daqueles que se comportam como se fossem, fez com que eu desejasse saber quando é que a ingenuidade vai embora, deixando a malícia no lugar. Malícia e ingenuidade, irmãs tão próximas e tão distantes. A Ruth e Raquel , o Caim e Abel das metamorfoses do amadurecimento. Bom seria se a ingenuidade nunca deixasse de existir. Pena que elas só podem mesmo coabitar nas piadas, nas crônicas, nas histórias infantis...

Saturday, July 17, 2010

A MENINA BARRÔCA


Muitos de vocês, quando me refiro à menina barroca, devem imaginar uma menina lindinha, com bochechas rosadas, cachinhos dourados e grandes arregalados olhos azuis. Em parte vocês têm toda razão; porque Celina, cuja história eu lhes contarei, já foi assim um dia. Hoje tem 32 anos. Emagreceu, não usa mais cachinhos e se rendeu à escova definitiva. Suas bochechas praticamente desapareceram. E substitui as maçãs do rosto por melões. De silicone. Mas a razão verdadeira pela qual dei-lhe esse nome não se deve exatamente aos seus atributos físicos da infância.

Vejam vocês. Voltemos trinta e dois, quase trinta e três anos no tempo. E lá Esther, grávida de Celina. Esther teve uma vida muito requintada. Estudou no Liceu Pasteur, fez faculdade de Sociologia na Sorbonne, freqüentou os melhores lugares da Sociedade Paulistana. E foi nessas altas rodas que conheceu Adolfo, com quem se casou. No momento em que soube que estava grávida, decidiu abandonar tudo que não fosse cuidar do seu casamento, de sua casa e dos preparativos para a chegada de Celina. Queria que Celina recebesse a mesma atenção que recebeu de sua mãe. Queria que Celina se sentisse privilegiada por ter uma mãe como aquela. Mas algo estranho começou a ocorrer.

Esther supervisionava a chegada dos móveis do quarto do bebê, quando um dos carregadores deixou o berço branco de laca bater na parede toda decorada com papéis de parede de balões coloridos. Embora não tivesse sido uma grande pancada, o impacto abriu um buraco na parede, deixando cair uma lasca de massa pintada. Ele se desculpou, prometeu que ia reparar o erro. Mas, estranhamente, Esther não ouvia o que ele dizia. Olhava apenas a parede.

O buraco deixava ver um enorme pedaço de tijolo antigo como era antiga aquela casa. Uma cor de terra, meio úmida. Lembrava feijão, chocolate, capuccino...
Esther se percebeu salivando, pensando em comer um teço daquela parede. De súbito seu superego lhe pregou uma peça. Naquele devaneio, enquanto se via mastigando saborosamente o tijolo úmido, aparece Madame Dominique, sua professora de francês, que de francesa só tinha o nome e o idioma, porque tinha uma alma nazista. E lá estava ela, batendo com a palmatória de madeira na boca de Esther, fazendo voar longe o tijolo.

Saiu correndo do quarto e foi ao banheiro. Olhou no espelho e se estranhou. "O que está acontecendo comigo? Deixa disso Esther... Se você fosse aquelas faveladas cheias de vermes, como aprendeu na aula de Estudos Sociais...". Indignada com seu momento delirante, recobrou o juízo e decidiu botar um fim nessa história. "Preciso consertar essa parede!". Chegando ao quarto do bebê, avistou novamente o buraco marrom e começou a salivar. E ficou atordoada. Foi então que decidiu esconder o seu desejo atrás da cômoda.

Adolfo chegou do trabalho. Jantaram. Conversaram. Foram deitar-se. Foi Esther ouvir o primeiro ronco de Adolfo que despertou do seu cochilo. Ficou olhando o teto e lembrou do tijolo, macio, úmido, cheiroso. Pensou naquele pedaço de massa corrida abandonado no chão do quarto pintado de rosa. "Que sabor que deve ter? Morango?" E impulsivamente saltou da cama, correu para o quarto do bebê, pegou o pedaço de massa e enfiou na boca. Tinha pedacinhos de tijolo aderidos à massa e se embriagou em êxtase ao matar sua vontade. E logo depois veio o a culpa, a vergonha, o medo. "Será que estou doente? E se fizer mal ao bebê?". Vieram também as pérolas da sabedoria popular: "Bem, pelo menos minha filha não vai nascer com cara de tijolo".

Foi dormir satisfeita, achou que o pesadelo tivesse acabado. No dia seguinte o desejo voltou. E ainda mais forte. Impaciente enquanto Adolfo não saia para o trabalho, correu para a despensa e pegou uma chave de fenda. Mal ele fechou a porta, correu para o quarto, arrastou a cômoda e arrancou um pedação de tijolo da parede. Consumida de culpa e vergonha, pensou em procurar um médico, um psicólogo, um padre...Não. Não iria passar essa vergonha. Jamais! E decidiu guardar segredo.

Passaram-se semanas, e todos os dias Esther arrancava um pedacinho da parede. Depois começou a arrancar pequenas lascas de tinta das paredes de casa. Procurava sempre um cantinho difícil de ser visto. Até o dia em que estava com Adolfo no quarto e ele, debruçando-se com o peso do corpo sobre a cômoda, arrastou-a inadvertidamente, colocando à mostra a parede carcomida.

- O que é isso Esther?
- Não sei querido! Um buraco! Devem ser....ratos!
- Impossível! Ratos fazem túneis e não comem paredes!

Esther ficou vermelha, ofegante e ameaçou um desmaio. Adolfo sustentou-a em seus braços, mas percebeu algo errado naquela reação. Olhou sério para ela, que começou a chorar. Mas jamais poderia revelar seu segredo! Foi então que explicou a ele que estava envergonhada, que o móvel tinha se chocado com a parede e os pedaços foram caindo, talvez por umidade...

- Mas Eshter, isso é impossível!
- Você está duvidando de mim? Eu sempre disse que essa casa era úmida! Eu disse que não queria morar numa casa velha.
- E por que não falou comigo antes?
- Achei que fosse ficar bravo comigo....

E foi assim que conseguiu, teatralmente, enterrar aquela história. O chato foi que Adolfo mandou consertar a parede no mesmo dia. E Esther teve que se contentar com as singelas lascas de tinta da sala de jantar. Mas tudo bem, porque a gravidez já estava no final.

Quando começaram as dores do parto, Esther se desesperou. Mãe de primeira viagem e ainda por cima com a fantasia de dar à luz a um tijolo baiano! Ou quem sabe uma lajota! Mas não ocorreu nada disso. Nasceu Celina, a menina linda da qual já lhes falei. E Celina foi crescendo, linda como sempre. Com oito meses engatinhava freneticamente pela sala. Nasceram os dentinhos: dois em cada andar da boca.

Esther nem se lembrava mais do quanto comeu barro, cimento e massa corrida. Um belo dia resolveu comprar um quadro novo e ao pendura-lo, errou o prego e bateu com o martelo na parede, arrancando uma casca de tinta que caiu ao chão. A lasca deixava avistar um pequeno pedaço do tijolo e Esther se lembrou de suas estripulias. Riu de si mesma e logo avistou Celina em seus pés. Mas quando olhou para baixo, quase morreu de susto. Celina levara à boca a lasca de parede e saboreava com mais gosto do que a sua chupeta. Esther ficou atônita. Cheia de culpa e desgosto, não conseguia nem se mover para tirar a lasca da boca de Celina. Só se moveu quando percebeu que a criança havia se engasgado com o reboque.

Celina foi crescendo e seu gosto pelas paredes cresceu junto. Toda vez que Esther a surpreendia com uma lasca de tinta ou com manchas marrons nos dentes, dava-lhe um beliscão, ralhava com ela. Mas não adiantava. Parecia que seu gosto pelas paredes aumentava a cada dia. Esther fazia um esforço enorme para esconder de todos. Até que Celina foi para a escolinha, e não se passaram dez dias do início das aulas para que Esther fosse chamada pela coordenadora e alertada sobre o conhecido hábito da menina. "Não se assuste, é relativamente freqüente entre crianças dessa idade. Deve ser verminose." Ela sabia que não era. Por sua culpa sua filha devorava paredes por onde passava. Por desencargo de consciência ou uma esperança sôfrega em atribuir causas médicas ao problema, fez o exame de vermes. Nada. "Então deve ser carência". Levou ao psicólogo. Ele achava que ela estava vivendo uma regressão uterina, porque o concreto representava a sustentação e blá,blá,blá. Tirando o fato de comer parede, Celina estava ótima. Sorria, brincava, tinha amigos, não estranhou a escola. Tirava boas notas. Aparentemente não havia nada de errado.

Foi então que Esther tomou uma decisão. Deixaria Celina ser livre para escolher o que desejasse. Mas conversou com ela, explicando que não poderia fazer isso em público, pois as pessoas não entenderiam. E assim elas se entenderam. Nada de psicólogos, médicos ou psiquiatras. Apenas um acordo entre mãe e filha. Um pacto. Adolfo nunca desconfiou. Esther nunca disse uma palavra sobre o assunto.

Um belo dia Celina brincava com suas bonecas em seu quarto. Estava com quase seis anos e usava a pequena cômoda para acomodar seus brinquedos. Um dia o casaco de pele da Barbie caiu atrás do móvel. Independente que era, fez força e moveu a cômoda para frente. E nesse momento avistou a parede. A mesma parede onde tudo havia começado. Sem ter consciência do que se tratava, começou a lamber a parede. De suaves mordidas, passou a morde-la e, com seus dentinhos afiados, arrancou alguns nacos da suculenta massa corrida.

E nesse exato momento, entram Esther e Adolfo no quarto e se deparam com a imagem de Celina cravando os dentes na parede. Adolfo gritou de espanto, olhando para a mulher como quem matasse uma charada, que desmaiou imediatamente. Celina olhava tudo aquilo com espanto e ficou tão traumatizada que nunca mais comeu uma lasquinha de parede sequer. Confessa que ainda hoje, às vezes sente vontade.

Admiro Celina pela coragem e pela irreverência com que contou sua história. E assim são as histórias da infância, muitas vezes trancafiadas pela tirania dos pais. Alguns comeram merda e passaram no cabelo e no berço. Tinha uma amiga do prezinho que tirava cera do ouvido, juntava com uma meleca do nariz e comia. Um outro bebia cola Cascorez da aula de educação artística. Há quem coma cabelo. Outros que comem unhas. Tenho uma prima que comia formigas. Se de um lado soa nogento, asqueroso, do outro lado são histórias simples da infância que nos fazem rememorar como somos primitivos e inocentes, na pior acepção do termo.

Enfim, quem nunca comeu parede ou nem fez nada disso que atire a primeira catota!

QUERO SER FRANÇOIS SAGAT


Não, ele não é tão famoso quando deveria. Conheci François Sagat através da revista gay francesa Têtu. É um dos homens mais bonitos que conheço. Mas não é dele que quero falar. Quero falar dos que desejam ser François Sagat ou qualquer coisa melhor que a si mesmos.

Outro dia, passeando pelos perfis dos Facebooks alheios (sim, eu gosto de xeretar...), encontrei um perfil sem cabeça, apenas com um escultural corpo masculino. O corpão chamou atenção. Mais do que atenção, cliquei em várias fotos, uma após outra e o álbum do sujeito era uma sucessão de fotos dele intercaladas com as do Sagat. Esse “mélange” fotográfico fazia com que o cara, anos-luz do ator pornô, parecesse mais atraente. Era como se aquela sequência propusesse uma ilusão de ver e ser visto melhor do que se é.

Além de achar crime com o deus pornô, acho crime contra quem vê e acho crime contra si. Nada contra colocar a foto mais bonita no perfil do FB, todo mundo faz isso. Nada contra publicar as fotos produzidas em estúdio, daquelas que fazem bonita até a Hortência, a Dercy e o Chacrinha. Se sou a favor de tudo isso, porque sou contra o “composé” do moço? Primeiro porque ele compôs com meu ídolo. Não me importaria se ele compusesse com o Justus, com o Faustão ou o Amaury Júnior.

Mas o mais importante, que me fez pensar e blogar, foi a crise de identidade contemporânea. Somos algo que não desejamos e queremos ser algo que não somos e talvez nunca seremos. Daí ficam embutidos a falta de amor próprio, o consumismo inclusive do mercado de beleza e a futilidade, a frugalidade, que arrematam como laço de vida esse pacote de auto-rejeição que estimula a constante e interminável reforma corporal. E quando a reforma chegou ao limite, esgotando os infindáveis recursos da estética, taca lá a foto do bonitão famoso e acredite que você é ele. Quem sabe alguém acredita, né?

Tenho reparado cada vez mais nos monstros do Bottox®. Todo mundo começa com a mesma história: só um pouquinho, para “aliviar” as rugas de expressão, os sinais do tempo. Todo mundo conta e acredita essa mentirinha, mas depois “ferrou”. Botox® toda semana, várias vezes por dia. Tem uma dermatologista famosa que é considerada a “rainha do Bottox®” em São Paulo. Na véspera de Natal a clínica dela fica lotada, cheia de madames querendo ficar “botocudas”.

Num dia de tédio, resolver pesquisar sobre essa famosa “botoqueira”. Vi uma foto dela e levei um susto: um pavor, toda deformada, desfigurada. Uma boca enorme, toda torta, disforme. Lógico que o Bottox® nunca anda sozinho: vem junto com fios de ouro para repuxar a pele, com aplicações de colágeno e gordura nas beiçolas. Aquela visão dantesca aguçou minha curiosidade googolística e saí pesquisando fotos e reportagens da Madame Botocuda. Pasmei. Ela era uma mulher normal, quase bonita.

O que é que ela vende? O que as pessoas compram. Acho que esses produtos causam dependência. Do mesmo modo que as pedras de crack, a toxina botulínica deve derreter miolos, desatarraxar parafusos e confundir sinapses. E, mesmo destruindo a própria imagem, continuam injetando. Deve dar fissura de Bottox®.

E o conjunto da obra vai ficando como aquelas reformas públicas superfaturadas: feias, mal feitas, caindo aos pedaços, mas vai tacando mais concreto porque ta ficando boooooooommmmmm!!! Lembrei da Marta Suplicy. Ela também era uma mulher bonita. Lembrei daquela coisa feia de concreto que ela colocou em cima da Praça do Patriarca, feia e cara como o Bottox® que ela gastou pra estragar a cara dela.

Outro dia, eram duas da manhã, recebo uma mensagem de uma amiga: “Quando quiser, te dou o telefone do meu dermato. Ele aplica Bottox® super bem”. Só vi a mensagem no dia seguinte. Respondi: “Obrigado, mas não estou precisando e na verdade sou até meio contra. Levei um susto. Pensei que você tava em surto!”. Ela respondeu: “Que nada, amigo, é super bom. Tira aquela aparência de cansada.” Mas eu ainda sou do tempo em que para tirar a aparência de cansado, nada como uma boa noite bem dormida e, nos casos gravíssimos, compressas com água gelada ou rodelas de pepino.

Como o pseudo-Sagat das páginas do Facebook, do mesmo jeito que a cara e as obras da Marta e igualzinho à Rainha Botocuda, o ser humano está perdendo a noção do ridículo. Como o paradoxo do retrato de Dorian Gray, quanto mais jovem ele ficava, mais feio, mais desfigurado, ficava sua imagem no retrato. Diferentemente de Dorian Gray, a feiúra do quadro fica estampada na cara e, juventude mesmo, só na sensação, na fantasia.

Sunday, July 11, 2010

LES PARCOURS DE LA VIE




Estava hospedado no Costão do Santinho, em Florianopolis. Estive na cidade há uns seis meses, num momento muito nebuloso da minha vida. Apesar do dia quente de verão em janeiro, o momento era gris. Cheguei a pensar em escrever sobre a "Estrada de Perdição" ou algo assim... Uma grande amiga chegou a me presentear com um livro de Viviane Mosé, tentando aliviar as pedras do meu caminho...



O tempo passou rápido e, do dilúvio, restaram as telhas quebradas, cicatrizes de uma tempestade que passou... As nuvens, marcas das incertezas e inconstâncias da vida, continuam rondando.

Há dois dias cheguei a Florianópolis. Praia linda, um resort legal, com sua "cafonice intrínseca" típica. Tempo nublado, saí para caminhar, conhecer esse pedaço pseudo-burguês (pelo menos em julho) da Ilha da Magia. Saí para caminhar pelas montanhas, para ver as inscrições rupestres. Desses ridículos rabiscos pretensamente arqueológicos, vem o símbolo do Costão do Santinho: um plim-plim flintstônico, que para mim nāo passa de uma criação estapafúrdia da indústria hoteleira barriga verde... Mas os símbolos são bonitinhos, lembram as marcas de surf-skate dos anos oitenta, como a Pakalolo, a Ocean Pacific e a Redley...

Nas montanhas pseudo-arqueológicas, o Sol saiu. Iluminou as pedras, o reflexo das águas, as minhas idéias. E de repente eu vejo um menino correndo por entre as pedras. Logo se aproximou e puxou conversa. Disse que era de Passo Fundo e que estava em Floripa há três anos. Contou que fazia (respirem fundo e imaginem o sotaque mais jeca do Jeca Tatu...)... que fazia "parcur"... De início nem compreendi o dialeto. Daí ele explicou que eram aquelas pessoas que escalavam muros, prédios e montanhas... Parcours. Parkur. PK, como chamam agora. Um amigo explicou que é como se fosse o treino dos ladrões fugindo da polícia. Disse que tinha quatorze anos, mas tinha cara de dez. Passou uns minutos e saiu pela sua jornada, desbravando horizontes.

Caminhando pela praia, encontrei o menino ao lado de uma mulher bêbada, falando impropriedades, junto com outra mulher, também bêbada, que devia ser a namorada dela, também dizendo impropriedades. Entendi tudo: Mariazinha, gaúcha de Passo Fundo, largou Olavo, o marido para ficar com Lúcia Helena, de Pelotas. Fugiram com o menino, se mandaram para Floripa para vender artesanato e tatuagem de Henna. Para ele, só sobrou fazer parcours, para fugir dessa beberrância toda.

Fiquei pensando nos parcours em nossas vidas, lembrando das coisas das quais temos que fugir, nos defender, agir rápido, transpor abismos, não por diversão, mas por sobrevivência. Por vezes, passamos a vida correndo, atrasados, feito o coelho de Alice. Às vezes não sabemos onde estamos, pra onde vamos e nem por que e podem passar meses, anos ou uma vida inteira para descobrirmos. Talvez nunca saibamos.

Mas parcours é isso memo. É como a água do rio, que corre, se entorta, se endireita, apressa, lentifica, se suja, se limpa, nunca para, mesmo sem saber que toda essa correria é pra encontrar o mar. Acho que ela, como nós, não sabe pra onde está indo. É apenas a energia de vida, a força da Alma que nos impulsiona a ir de encontro ao mar, ao profundo, ao Destino.

Como em vários desses parcours em nossas vidas, acabamos, inexoravelmente, refazendo a rota, caindo ou nos direcionando ao mesmo caminho, consciente ou inconscientemente. Andamos pela rota de novo e novo como uma forma de verificar quais foram os erros, ou como podemos fazer melhor da próxima vez.

Enfim, a vida é um eterno parcours. Bom PK pra vocês.

Thursday, July 08, 2010

SOFIA NAS BORDAS DO MUNDO



“Iansã comanda os ventos
/ E a força dos elementos
/ Na ponta do seu florim
/ É uma menina bonita
/ Quando o céu se precipita
/ Sempre o princípio e o fim” (As Ayabás, Caetano Veloso e Gilberto Gil)


“Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar” (Assim Falou Zaratustra, NIETZSCHE, 1885)

“Brilhantes, brilhantes, brilhantes botas de couro / Garotinha açoitada no escuro” (Venus in furs, Velvet Underground)


Sofia não era a sofia do livro famoso. Mas era uma menina solitária trancada num corpo de mulher. Vagava por esse corpo, sozinha, feito calabouço escuro. Feito bolinha de lata dentro de chocalho, a menina caminhou a vida inteira, dentro da outra que era ela mesma. Essa outra, uma sofia triste e desencontrada que por fora fingia estar rindo, não era a verdadeira. Era uma casca dura que, ao mesmo tempo que aprisionava, protegia a menina das dores do mundo. Dizem que foi até a própria menina que criou a casca de mulher para não ser machucada pelos homens.

A menina sobrevivia aos balanços de sua couraça. Suportava o frio, o calor, a chuva, a seca. Quase se afogava com a chuva, quase morria de sede, quase se afogava no dilúvio no próprio choro, quase se engasgava com a secura dos próprios lábios. Sofia vivia um “quase” que eram bordas da vida, limites da alma. Pelas frestas das cascas da adulta, Sofia também se nutria e se aquecia com o sol e com o cheiro do orvalho.

Como quando tropeçamos e desabamos através de uma escadaria, Sofia caiu no terreiro. Lá, pelo tanto que chorava porque sangrava sua alma ferida, pela fraqueza com que caminhava pela vida, lhe disseram que era filha de Yemanjá. A menina deixou que a casca se agarrasse aos azuis da deusa, como forma de trazer colorido à vida, para que a casca se parecesse com algo vivo.

Ser azul lhe trouxe paz de espírito. Crer em ser filha de Yemanjá lhe trouxe sensação de perdão, de poder perdoar e poder esquecer. A Umbanda, pelas cores e pelo canto triste de Yemanjá, pelas doces palavras da preta-velha e pelo sorriso do Erê, fizeram a menina crer que estava “quase” curada. Mas ainda assim não era inteira. Machucava as mãos e pés, feria as carnes como se exteriorizasse as feridas em sua alma de menina. Era “quase” curada porque as cores pintavam a casca; porque o canto era ouvido pelo ouvido da casca. Porque a casca havia se tornado tão dura que protegia até de coisa boa. A menina sangrava a casca pra ver transformar a “coisa” em mulher. Talvez fosse por isso que Sofia não se recuperava. Queria crer, mas não conseguia. Queria lutar, e de fato lutava, mas não vencia.

E nesses dias tristes, escuros e frios, vem o vento, que parece entristecer mais esse tudo tão triste. Mas é o vento que alimenta o fogo, é o vento que transporta as sementes. É o vento que dá vida às faíscas, transformando-as em labaredas.

Foi o vento que levou Sofia àquele barracão. Nunca tinha visto Candomblé antes. Estranhou as roupas do povo do Keto: mulheres de ombros de fora, com o tal pano amarrado forte no dorso. Viu a dança dos Orixás, assustou-se com os cantos, os “ilás” dos santos. Mas de tudo aquilo, o que mais lhe chamou atenção foram as danças de Yansã. Sacudiam-se, exuberantes, vigorosas, exibidas e vaidosas. Tremelicavam pelo salão, chacoalhavam-se em frente aos atabaques. De olhos fechados, colares de contas vermelhas e terracota, eram como as labaredas das fogueiras de São João.

Partiram as Yansãs, chegam os baianos e foi o baiano, do qual chegou a desdenhar no início, que rasgou a mulher-casca para libertar a menina prisioneira-protegida. Disse a ela que, entre outras coisas, pesava sobre ela, sobre toda a sua existência o “encosto” da parente perturbada. Com a ingenuidade da menina que era, Sofia perdoou aquela que a fez sofrer durante toda uma vida. Perdoar, na acepção mais correta do termo, é deixar partir; deixar que rolem as pedras pelos rios da vida; é desfazer-se dos pesos desnecessários para seguir o caminho mais leve. E Sofia perdoou, deixou partir.

Agora, liberta, não era mais necessário querer morrer. Estava curada. Mas do mesmo modo que acontece quando soltamos os passarinhos há anos presos nas gaiolas, presos e protegidos, Sofia não se deu conta que a casca-mulher que habitava era seu veículo de vida. Sem ele era criança, bebê, indefesa e ingênua. Com a visão dos recém-nascidos, ela não podia enxergar quem estava à sua volta para ajudar e amparar. Sentiu-se abandonada. E agora sem a casca para que pudesse se esconder.

Então Sofia sentou no chão e chorou, como fazem as crianças. Mas foi desse choro que brotou um rio de vida que a conduziria à sabedoria, ao equilíbrio. Eu sei que Sofia crescerá. Será criança amanhã. Será mulher depois de amanhã. E poderá ser feliz, talvez para sempre. Eu me sentiria feliz se fosse ela. Livre dos encostos, livre dos pesadelos.

Essa não é uma obra de ficção. É uma história de devoção e crença. E hoje, num momento em que experimento um tipo de liberdade parecida com a de Sofia, desejada, esperada, planejada, fico como quando ganhei meu primeiro computador: queria muito, mas na hora, não sabia como funcionava. Sofia, a sábia, a sabedoria. Tem um pouco dela em mim. Tem um pouco de sabedoria nos meus atos e tem um pouco de criança perdida no turbilhão das coisas da vida.

Parei para pensar porque é que Sofia foi “identificada” como filha de Yemanjá num certo momento. Não acho que foi simples engano. Talvez fosse uma “onda” de limpeza e proteção. Dizem que, na criação do mundo e, principalmente na criação dos seres, foi Yemanjá a responsável pela construção das cabeças. E é por isso que ela, por mérito, guarda as cabeças de todos os filhos na Umbanda. Ela é a deusa da purificação, da transformação e, desse modo, do perdão. Para mim, Sofia não é filha de Yemanjá. Sofia estava sob a “guarda”, sob os “odus” da deusa. Enquanto sua alma sangrasse, as águas sagradas do mar, com seu sal que tudo cura e purifica, estavam lá para transmutar as dores e preparar Sofia para o grande perdão.

É como quando a gente toma aquele banho bem demorado para poder colocar uma roupa nova para uma festa. No caso de Sofia, uma festa de nascimento. Ou renascimento. Dizem que a palavra religião vem do termo “religare”, ou ligar-se novamente. Pode ser religar-se com a Deidade, com o Supremo ou ainda, religar-se consigo mesmo. Yemanjá lavou a alma e a cabeça de Sofia para que pudesse colocar sua roupa vermelha de Yansã.

Agora sim, uma mulher de verdade. Não a Sofia farsa, que parece triste e finge ser alegre. Não a Sofia calma, sinuosa e misteriosa como aparentam as Yemanjás. Não a Sofia que canta o canto triste, mas a Yansã guerreira, forte, decidida, vermelha, fogosa, que brada seu canto de guerra.

Boa Sorte, Sofia.

Friday, July 02, 2010

PREÇO TABELADO: O COMBINADO NÃO SAI (TÃO) CARO


Não sei se são as veias ancestrais ocultas, coisas cármicas ou sei lá o que mais, o fato é que sempre tive afinidade com a cultura judaica. Mesmo antes de conhecer mais de perto, sempre me interessei, li a respeito, sentia vontade de conhecer o universo, a cultura desse povo.

À medida que fui conhecendo, me apaixonei mais e mais pela comida. Ouvi dizer que não existe uma comida judaica típica, que ela se compõe de uma mistura de influências (ou “copiâncias”) das comidas de vários países por onde os judeus se espalharam, e que não são poucos.

De todas as coisas, tem umas que eu gosto muito mais: bagels, pastrami e gefilte fish.
O Bagel é um pãozinho fofo, com um buraco no meio, que pode vir coberto com gergelim, alho, cebola ou ser feito com coisas doces ou frutas. Adoro comer bagel com cream cheese e Lox (um tipo de salmão seco) com mostarda e dill (umas ervinhas aromáticas parentes da erva-doce, aqui chamada de fucho). Houve uma época em que trazia vários pacotes de bagels dos Estados Unidos para congelar. Desisti de fazer isso não foi porque eu enjoei deles. É porque a conta calórica dessa remessa diária de carbos não estava dando muito certo...

O pastrami é um tipo de carne seca desidratada. Gostei de todos os que já comi, mas os melhores estão realmente em Manhattan, principalmente no Katz Delicatessen. Lá você come um sanduíche de pastrami por uns dez dólares, mas que valem pela refeição de um dia inteiro. Até porque, além do sanduíche enorme, esses restaurantes colocam uma bacia de pepinos em conserva e uma tigela de Cole Slaw (uma salada de repolho adocicada maravilhosa), o que já dá uma certa sustância. Diversas vezes cheguei a jogar o pão fora pra comer só a carne ou levar metade do sanduíche para casa.

No meu desespero pela busca de um bom pastrami, já percorri várias padarias, empórios judaicos, delicatessens e importadoras chiques. Até então nunca havia achado nenhum que chegasse aos pés dos de NY. Já tentei até fazer em casa e não deu certo. A carne, depois de seca, assada, temperada e todo um processo que durou mais de uma semana, resultou num pedaço de carvão com cheiro de fumaça. Domingo retrasado, na minha greve de jogo do Brasil, decidi ir ao AK Delicatessen para comer. Já havia estado lá outras vezes e não tinha gostado muito do pastrami. Ia sentar lá pra almoçar, mas como faltava menos de uma hora para o maldito jogo, fiquei com medo do pessoal da cozinha cuspir na minha comida ou colocar caquinha de nariz no sanduíche. Pedi para levar um sanduíche de pastrami e um cheesecake. Mas dessa vez, algo mágico ocorreu. Mudaram a receita e foi o melhor pastrami que comi aqui no Brasil, quase igual aos de NYC.

Last but not least, a terceira coisa judaica que mais amo é o Gefilte fish. Esse é um bolinho de peixe com farinha de matzá que é fantástico. Só tem duas coisas que não gosto nele: a primeira é o acompanhamento. Raiz forte. Todas as mães judias do universo falam que “não existe gefilte fish sem raiz forte”. Uma vez comprei uns dez deles para levar pra casa e a Jewish Mame trouxe toda orgulhosa os potinhos de raiz forte. Educadamente agradeci. Ela repetiu a frase secular. Face à insistência, aceitei por educação e a filha dela, intragável, desgraçou a gentileza, dizendo: “De graça aceita qualquer coisa, não é mesmo? “ . Não a destratei por educação, mas juro que guardei o pote por uma semana para devolver a ela, pra que ela visse que estava intocável. Mas passada a raiva e aumentado o terrível cheiro pela casa, resolvi jogar fora. Até porque ela não compreenderia a essência da minha atitude.

A segunda coisa que não gosto nele é o preço. Porque diabos um simples bolinho de peixe amassado com farinha custa, em média, dez a quinze reais. São Paulo, New York, Paris, Praga, México, Belo Horizonte. Por onde passei e comi, paguei o mesmo preço. Especulei mentalmente: as Jewish Mames tabelam os gefiltes. Acho que o gefilte é um alimento especial, tipo um “Mc Lanche Feliz” judaico que reverte em um fundo para a comunidade judaica mundial. Na verdade, nada que eles fazem é barato. Tudo bem que eles gostam de coisas chiques, saborosas, de qualidade, mas que é caro, é caro.

Enfim, ser feliz custa caro. Em dinheiro, em empenho, em intenção. E acho que vale o preço. E como diz o ditado: “o combinado não sai caro”, mesmo que seja caro, você sabia que ia ser....