
Hoje estava conversando com uma amiga sobre a Morte. Eu penso muito sobre a morte, não porque a deseje hoje em dia, nem porque tenha medo dela. Sei que ela vai chegar um dia, mas o que eu tenho realmente medo é do que a antecederá. Será que eu estarei lúcido? Será que morrerei sozinho? Será que sofrerei muito até ela chegar? Morro de medo de ficar “gagá”, dependendo de outros, decrépito, usando fraldas. Já me disseram que isso não deve ser problema, porque se eu ficar “gagá”, eu nem me lembrarei disso. Será mesmo? Será que meu espírito vivo não terá consciência e vergonha daquele estado deplorável? Uma de muitas perguntas sem resposta sobre a mortuária morte.
Tem coisas que eu realmente desejo que não aconteçam, e espero que Deus me escute: que minha morte seja súbita, que eu não esteja sozinho, que não sinta dores longas; eu realmente prefiro morrer num acidente de avião do que ser atropelado por um fusca verde e que, de preferência, se não for de acidente aéreo, que seja no meu futuro apartamento em Paris, bem em Saint-Germain-des-Près. Se sobrar corpo, quero que bote fogo e que joguem as cinzas em qualquer lugar; pode ser samambaia, no próprio Sena, na privada. Cinza é cinza, não serve pra nada.
Morto o corpo, que meu espírito vá para o céu dos macumbeiros, com bastante atabaque e danças. E tomara que tenha vinho de palma, acarajé e Malrboro Vermelho. Por favor, Deus, me escuta: não me manda pro “Nosso Lar”! Se o céu dos macumbeiros não existir, pare a nuvem no meio do caminho e deixa eu descer na primeira encruzilhada. Quero ser servente de Orixá.
Mas, além da minha morte, falar da Morte me trouxe lembrança de mortes, pré-mortes e pós-mortes curiosas. Sempre se ouvem histórias de mortos que ressuscitam ou que são descobertos agonizando no caixão no momento da exumação. Dizem que isso aconteceu com o cantor Antônio Marcos e com outros que não me lembro agora. É a tal da catalepsia, um estado de profundo enrijecimento dos membros e ausência temporária de sinais vitais, que leva a crer que a pessoa está morta e na verdade não está. Verdade ou mentira, acho que a fantasia da não-morte está presente no imaginário de quase todas as culturas. Daí que surgiu o velório, como uma forma de atestar, passadas várias horas ou dias, que o morto está, de fato, morto. Daí deriva também a indústria das campainhas de cemitério. Olha que coisa: você pode ser enterrado com uma campainha eletrônica na mão, para apertar e ser salvo no caso de ter sido enterrado vivo. Dizem que tem algumas sistemas que acionam até um sistema de ventilação, para, caso não se morra de susto, não se asfixie.
A avó de uma amiga, matriarca de uma família do interior de São Paulo conhecia uma oração dedicada a uma Santa que, segundo minha amiga, quem aprendia a oração de cor era capaz de saber o dia da própria morte. E ela sabia e avisava a todos que queria ser velada com a camisola que usou em sua lua-de-mel, guardada no baú de seu enxoval.
Cento e seis anos se passaram, e nada na Dona Morte chegar. Enfisema pulmonar, insuficiência cardíaca, muita tosse e dispnéia. A velha não saía da cama por nada e dormia sentada para conseguir respirar. Em outubro do tal ano, a velha tava morre não morre. Semi-consciente, desfalecida, a família achou por bem convocar a família espalhada pelo Estado para o provável enterro.
Gente vinda de todos os lados, filhos, netos, bisnetos e até tataranetos. Rodeada de um montão de gente, aguardando a “passagem”, a velha dá um suspiro profundo, daqueles do tipo “agora vai”, abre, com esforço, um único olho e pergunta quase cochichando para a filha:
“Ô, fia, o que esse povo todo faz aqui?”
“Vieram visitar a senhora, mãe.”
“Pois pode mandar todo mundo simbora que ainda não chegou a hora. Eu vou avisar quando chegar; antes disso não quero ninguém rondando minha cama feito mosca.”
E chegou o final de ano. Passou o Natal e, no dia trinta de dezembro, a velha chamou a filha :
“Agora pode chamar o povo, que eu estou indo embora. Porque meu véio ta chamando.”
E veio toda a parentada. A velha foi banhada com ajuda das filhas, perfumou-se de água de cheiro, vestiu a camisola, que estava larga de tão miúda que estava. Beijou e foi beijada pelos parentes todos.
“Agora já chega. Meu véio já eá impaciente”. Espalmou as mãos sobre o peito, sentadinha e fechou os olhos, como se embarcasse numa cápsula. Deu enfim aquele último suspiro e sorriu. Devia ser o velho tomando suas mãos para a viagem.
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A saga da velha não parou por aí. A morte realmente é só o começo. Devido ao seu crítico estado de saúde, há anos dormia sentada e sentada morreu. Na hora de encaixota-la, não havia meios de esticar aquele corpinho franzino. Parecia uma cadeira feita de galho seco, dessas coisas modernistas. A única solução foi amarrar a velha no caixão. Com muito esforço conseguiram; estavam com medo de partir a velha no meio. Finalmente esticada com cordas de laçar boi, ouviram um “creck” quando conseguiram atingir os noventa graus.
Já no velório, ninguém notava a diferença. Lá estava ela, sorridente, bem como a parentada, após anos de espera e diversas indas e vindas aos “pré-velórios”.
Lá pelas quatro da manhã, a algazarra corria solta. Bate-papo, risadinhas, piadas, lembranças. E, de repente, no meio da confusão, o corpo da velha salta pra frente, como num arremesso, deixando ela sentada no caixão. A parentada sai toda correndo da sala, gritando “está viva, está viva”. Alguns já pensaram que esse não seria o último e ficaram imaginando quantas vezes mais teriam que vir nesses ensaios mortuários. Não era nada disso. As cordas haviam se soltado. Provavelmente a velha estava desconfortável amarrada daquele jeito. “Isso não é jeito de alguém ir pro céu, amarrada, como se fosse um “coisa-ruim”, disse uma das tias. Decidiram velar assim mesmo, sentada, sorridente. O enterro atrasou um pouco, porque demorou pra conseguirem um marceneiro que fizesse um caixão quadrado, que coubesse o corpo daquele jeitinho, sentada, como se estivesse na mesa da cozinha. Feito isso, a velha descansou do jeito que descansava há longos anos.
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Sinhô Moreno, parente de um amigo meu, morreu aquela morte que eu sonho: sem doenças, em idade de anos bem vividos, lúcido. Vestia-se para ir à missa na pequena cidade interiorana onde morava, perto de São José do Rio Preto. Passou seu perfume. Sentiu uma dor forte no peito, gritou pela ajuda da esposa “Véia!” e caiu mortinho dos braços da Dona Maricota. E lá se deu toda a parafernália de velório e no meio da noite, Tia Cremilda, cunhada de Nhô Moreno, começa a gritar, escandalosamente: “Tá vivo! Tá vivo!” e desmaia no meio do salão. A essa altura, ela desmaiada e o salão vazio, porque todo mundo tinha corrido. Nhô Zeca, irmão de Sinhô Moreno foi o primeiro a se aventurar na via ressuscitandis. Acudiu a desmaiada, olhou para o caixão e tudo estava imóvel.
Tia Cremilda disse que viu o defunto mexer o dedo do meio. Todo mundo achou que era fantasia, e uma fantasia erótica, porque haviam sérias desconfianças de uma paixão recolhida da velha pelo falecido.
Volta o silêncio a reinar. Nhô Bentinho, primo e amigo fiel do defunto, chega ao velório para dar seu adeus. E, ao colocar suas mãos sobre a mão de Nhô Moreno, sente o seu dedo mexer. Sem desmaiar, começa a gritar: “Tá vivo, sô! É um milagre! Nhô Moreno tá vivo!” E lá se foi Nhô Zeca averiguar os fatos. De fato Nhô Moreno mexia o dedo do meio, como se apontasse para algum lugar. Chamaram Doutor Cassiano, que lhe tomou os pulsos, os batimentos, iluminou seus olhos acinzentados. “Está morto”, assentiu. Mas tomou um baita susto quando viu o dedão duro mexer. Tomou a mão do defunto e achou a causa do mexe-mexe. Era um besouro preso embaixo da mão do falecido, que, tentando escapar de ser enterrado junto, forçava a saída empurrando o dedo para cima.
Sim, numa terra cheia de besouros, é sempre bom averiguar se eles não se enfiaram em algum buraco indesejado, causando várias falsas impressões...
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Emerenciano era um homem querido pela família e pelos amigos. Morreu dessas mortes que não quero pra mim: atropelado no meio da rua por uma bicicleta cor-de-laranja velha e enferrujada, dirigida por um bóia-fria. Ao menos foi rápida: nem bem levou o tranco, tropeçou em si mesmo, bateu a cabeça numa pedra pontuda no meio da rua de chão batido e apagou. Um filete de sangue escorreu pela têmpora, do furinho deixado pela ponta da pedra.
Ninguém queria crer em sua morte. Quarenta e cinco anos, rapaz jovial, esportista, sem vícios. Casado há quase quinze anos com Laurinha, sem filhos, viviam numa eterna lua-de-mel, como diziam.
O velório foi uma tristeza só. Parente após parente, amigo após amigo. Todos se aproximavam do corpo para se despedirem, desconsolados. Apenas Laurinha não desgrudava um minuto do caixão. Chorava, conversava com Deus, reclamava da injustiça e do erro cometido; falava com Emerenciano, fazia juras de amor eterno e prometia resguardo e fidelidade. “Como eu queria, por Deus, que isso não fosse verdade, marido!”, dizia com os olhos copiosos de lágrimas.
E, de repente, um solavanco no caixão. O corpo de Emerenciano estremilicou. “Tá vivo, ele tá vivo! Milagre de Deus!”. Todo mundo veio ver. Laurinha sacudia o marido, esperando que ele desse novo sinal de vida. “Deve ser impressão, minha filha, vai descansar um pouco”, disse o pai da viúva. E depois foi a vez da mãe de Emerenciano experimentar o sacolejo. Nova onda de susto. E no terceiro sacolejo, perceberam que, embaixo do caixão, se ouvia um toc-toc-toc. “Que é isso, assombração?”. Não era nada disso. O irmão de Emerenciano levantou a toalha na mesa fúnebre e encontrou a tal assombração. Era Simbá, o vira-latas da venda do Pedro Açougueiro, coçando sarnas e pulgas embaixo do caixão. E, no que se coçava, batia sua coxa esguia na perna da mesa, sacudindo o morto.
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Ricardo morreu como o Nicholas Cage em “Despedida em Las Vegas”: bebendo. Tecnicamente foi um infarto, mas infartou bêbado. Perdeu dinheiro, família, negócios e sua única companheira era a “marvada pinga” na solidão da kitchnete onde morava.
E chegaram juntas, Marta, sua ex-mulher e Leila, prima dela, amigas inseparáveis. Correram para a sala do velório, deram de cara com o caixão.
“Leila, como ele está horrível. Inchado, descuidado!”
“É verdade, ele era tão bonito, né?”
“Ele se acabou com o álcool, né?”
“Mas pelo menos ele morreu feliz...”
“E esse cabelo, como ele ficou careca rápido... Encontrei ele no mês passado e ele estava tão cabeludo...”
“Menina, e esse terno horroroso, quem escolheu?”
“Vai ver que foi um amigo bêbado dele, porque nem terno ele tinha.”
“Essa gravata horrorosa, amarela, com abelhinhas? Cruzes!”
“Menina, e essas flores, essas velas, tudo tão cafona!”
E enquanto elas convulsionavam de tanto falar mal dos detalhes do velório, um monte de gente foi se aproximando, olhando feio para elas.
“Amiga, o que essa gente tá olhando feio? Você conhece?”
“Não faço idéia... Será que ele tinha outra família?”
“Amiiiiiiga... olha pra baixo e vamos sair de fininho....”
“Mas por quê? Não posso criticar o velório do meu ex....”
“Defunto errado, amiga!”
E elas saíram, de forma muito elegante, ao perceberem que
entraram na sala errada. Correram para trás do velório, rindo e chorando ao mesmo tempo. Leila mijou nas calças de tanto rir. Riram por mais de uma hora, sem parar. Foram ao banheiro, retocaram a maquiagem, mas, ao entrar na sala, desataram a rir novamente. Deixaram o velório pra trás e decidiram terminar de gargalhar no café do Shopping Iguatemi.
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Sim, a morte não é só dor e tristeza. Ela pode ser transformação, passagem, reencontro e até piada. Dizem que contar piadas em velórios é uma forma de defesa maníaca contra a depressão. Pode ser. Mas também pode ser que a morte possa ser encarada como algo mais natural, menos trágico, uma vez que é inevitável e, a menos que se saiba a oração da Nossa Senhora de Nem Quero Saber de Quê, é imprevisível.
(Na foto: Nossa Senhora Morta sendo velada pela Confraria da Nossa Senhora da Boa Morte, na Bahia.)