Blog do Doutor Fofinho

"Tudo começou há algum tempo atrás na Ilha do Sol..." Há muitos anos eu montei esse blog, dando o nome "Le Cul du Tabou", inspirado por uma amiga, para falar sobre o tabu das coisas. Ganhei muitos seguidores, mas desde 2018 não escrevi mais nele. Estou retomando, agora com novo nome, o "Blog do Doutor Fofinho", muito mais a minha cara, minha identidade. Sejam bem vindos.

Sunday, October 31, 2010

SOBRE NEGROS ARQUÉTIPOS E SOMBRAS


Estou aqui no aeroporto de Fortaleza. Satisfeito, alma renovada. "Limpeza espiritual terminal" concluída. Sim, porque depois de um feriado prolongado em Salvador e uma semana nas praias do Ceará, não tem catiça ou urucubaca que não se dissolva. Nem precisei acender velas ou levantar preces; a simples razão de estar é limpeza por si só. Fica hoje uma tristezazinha, uma saudadinha desse tempo que acabou de acabar, de acordar com o Sol nascendo, de ver o pôr-do-sol, de tomar água de coco e banho de mar todos os dias. Fiquei com muita vontade de colocar uma peruca, um nariz de palhaço, me fingir de idiota e analfabeto e me tornar deputado estadual no Ceará. Porque assim ia poder trabalhar pouco, ganhar muito e morar na praia. E ainda me devolvia ao Ceará um Tiririca melhorado.

Esses dias sem ter que pensar em nada às vezes me perturbam; tenho uma insana dificuldade em deixar a mente aquietar. Basta eu esvaziá-la, lá vem um ímpeto de torná-la repleta de outras coisas, bobagens ou não. E aproveitei sem querer para reparar nas pessoas e suas relações com a vida e com o poder.

Faz tempo que tenho acompanhado a transformação de algumas pessoas na sua relação com o poder. Passaram por mim nesses anos todos, alguns jovens de coração puro e que, como aquela sombra que chega encobrindo o sol e claridade nos filmes de terror, foram escondendo ou perdendo a pureza. Não estou falando de perder a ingenuidade; porque ela deve partir com o amadurecimento; falo da pureza, do coração limpo. Infelizmente ainda vou poder observar muitas dessas sagas, porque o meio médico e, mais ainda, o meio acadêmico, são lugares propícios à sujação da alma. A alma é algo muito delicado que vira lama com apenas um movimento.

Mas não foram só os jovens que vi passar. Vi adultos e velhos infelizes, prisioneiros de horríveis armaduras aristocráticas, muito provavelmente porque seguiram, desde jovens, a mesma jornada que descrevi anteriormente. Acho que o poder, além de sujar e escurecer a alma, envelhece e entristece.

Infelizmente a obsessão pelo poder não está só na Academia. Um lixeiro condecorado como chefe dos lixeiros pode se obnubilar com o poder e se tornar um tirano. E fiquei reparando nos tiranos que existem por aí a aprisionar almas com sua fama, seu dinheiro, seu poder.

E de onde será que isso vem? Será que algumas pessoas nascem com o gérmen da tirania e da gana pelo poder, esperando para serem estimuladas ou libertas, como o espectro de Zanoni ou é um mal que se aproxima e vai contaminando lentamente, como ondas radioativas? É possível que aquela pureza que enxergamos seja uma capa, uma cápsula que irá eclodir em algum momento?

Os ébrios de poder muitas vezes mudam até as vestimentas: o jeans e as camisetas dão lugar para ternos, gravatas e sapatos cuidadosamente engraxados. Infelizmente o poder não acopla bom gosto; muitas vezes é possível desvendar barracos ocultos sob palacetes.

Há alguns anos conheci uma pessoa da qual me tornei amigo. Quando o conheci, ele estava num processo difícil de transição na vida e me parecia uma pessoa bem normal. À medida que o tempo foi passando, ele foi resolvendo suas finanças e se assentando em bons empregos, de tal modo que cobriu-se de louros, passou a contar vantagens e menosprezar as pessoas nas conversas mais banais. Comecei irremediavelmente a tomar asco dele, mas sentia uma certa culpa, me julgava intolerante e tentei, por mais algum tempo, arrastar aquele protótipo mal sucedido de amizade. Vivia em minha casa, enquanto eu não havia sido convidado nenhuma única vez para a dele. E acabei percebendo que aquilo não era amizade, era conveniência; dessas que só se fazia em ocasiões em que ele necessitasse.

Eu cheguei a me perguntar o motivo de querer escrever sobre sombras e pântanos, com tanto sol e alegria me rodeando. Infelizmente não controlo e deliberadamente não desejo mais controlar o meu pensar. E essas coisas escuras, sombrias, deixo-as, como a tristeza, se achegarem, colocarem suas pesadas mãos em meus ombros e escurecer minhas letras. Mas é lógico que elas não me visitam sem motivo.

Como disse, fui visitado por situaçōes e pessoas que espelharam egoísmo, ganância, autoritarismo e perversidade. Dessas visitas que chegam sem avisar, sentam-se à nossa mesa, comem da nossa comida e vão embora deixando negras prendas, como quem emporcalhasse aquele lavabo sem janelas.

Mas tudo que nos chega deve ser sempre bem vindo, porque às vezes são formas esquisitas de mostrar os ensinamentos da vida ou são os panos sujos e fedidos usados para limpar a alma. Não tem como livrar-se do lixo sem ver o lixo; não há como lavar o quintal sem ver a água suja escorrer pelo caminho.

Definitivamente não quero o poder. Quero apenas poder. Poder fazer as coisas que sonho e desejo; poder me sentir mais e mais realizado e, cada vez mais, poder ficar longe desses pântanos escuros de pessoas infelizes.

Thursday, October 28, 2010

FORTALEZA, CONGRESSOS E DILMA.


Estou em Fortaleza para um Congresso. Congresso Brasileiro de Psiquiatria. A cada ano que passa, ele fica mais chato, mais decadente e mais fraco cientificamente. Acabo participando todo ano, porque somos “obrigados” a ganhar pontos para manter válido um titulo de especialista. Esse ano quis realmente vir para fazer uma prova e também porque era em Fortaleza. Ainda não conhecia essa cidade maravilhosa.

Uma amiga me deu essa semana a melhor definição de congresso médico: é a Intermed de Médico. A Intermed é uma competição que ocorre entre faculdades de medicina e funciona da mesma forma que funcionam os congressos. A maioria das pessoas finge que vai jogar ou assistir os jogos, mas está indo curtir, se divertir. No congresso a mesma coisa e configura a desculpa lícita para enforcar uma semaninha fora do período de férias oficiais. Muita gente tem dispensa dos trabalhos e, nos consultórios, fica muito charmoso explicar que se está num congresso.

É claro que tem gente que assiste mesmo a palestras, mesas redondas e conferências o dia todo. Tenho um amigo que foi comigo a um congresso em Praga e tive que obrigá-lo a faltar um dia no congresso para conhecer a cidade.

Eu já assumo a vagabundagem: congresso, na praia, em outubro? Faço como todos os outros: meio período. Quando fui a Salvador, era praia de manhã, congresso de tarde e balada à noite. Como estou hospedado num lugar um pouco afastado da cidade aqui em Fortaleza, decidi inverter os turnos. Congresso de manhã, praia, praia e mais praia de tarde. Quer dizer: praia, piscina, piscina com ondas... Um mix de prazeres aquáticos. E ainda sobra um tênue espacinho para uma ginastiquinha.

Uma amiga perguntou no Facebook quantas aulas ela precisava assistir para fingir que estava no congresso. Na prática não precisa assistir nada. É só chegar, tomar um café nos stands dos laboratórios, cumprimenta uma meia dúzia de pessoas, e vai embora de fininho. Quando alguém comentar: “Onde você estava? Eu não te achei em lugar nenhum!”, você diz que estava na aula da especialidade que essa pessoa não curte. E pronto.

E na porta de entrada do Centro de Convenções, um show de horrores. Vi muita gente feia. Vi gente bonita também, mas eram espigas no cafezal. A maioria eram feias e cafonas. Triste fim dos psiquiatras. Já tenho notado isso há vários anos. Os dermatologistas sim, que se cuidam. Congresso de Dermato é um chiquê. Agora a psiquiatria tem muitos daqueles pós-ripongos encaixotados, então você encontra coroas de batas e mulheres de vestidos hippies e flor no cabelo. Agora outra coisa de vestuário em congresso me entristece: ternos. Principalmente em cenários litorâneos. Tudo bem que tem gente elegante, mas tem cabimento vestir terno preto com gravata vermelha no verão de Fortaleza?

Eu sempre tive um sonho: me tornar presidente da ABP para decretar uma lei. Ordenarei que todos os congressos sejam feitos em capitais litorâneas do Rio de Janeiro para cima. Já me perguntaram sobre Floripa: eu disse que a cidade é linda, mas tudo fica muito afastado e chove muito. Isso quebra o clima. Mas na minha hipomania praiana, cheio de energia de sol e de banhos de mar, decidi que não quero mais ser presidente da ABP. Quero ser presidente do Brasil. Sim, porque, se qualquer idiota pode, por que eu não poderia?

Eu tenho vários projetos BIZARROS para minha plataforma eleitoral, mas é segredo. O único que eu me permito contar é a transformação dos estados brasileiros. Eu explico: vou redimensionar todos os estados que serão divididos em faixas horizontais ao longo do país. Desse modo, todos os Estados terão litoral e todas as capitais serão obrigatoriamente localizadas no litoral do pais. Daí não preciso baixar a lei na ABP, porque todo ano vai ser numa capital diferente e LITORÂNEA! E ainda vai ser um marco na queda do preconceito entre regiões. Imagina só: é perfeitamente possível que Rio e São Paulo se tornem um único estado, eliminando a rincha entre aos mesmos! Idem para Belém e Manaus e por aí vai....

Mas ontem, na porta do Centro de Convenções, com aquele calor insuportável e um sol tentador, pensamentos terríveis vieram à minha cabeça. Acho que os congressos deveriam ser feitos apenas na parte da manhã, para poder aproveitar o resto do dia. Sim, corro um grave risco de me tornar um ditador cruel. Daí eu vou querer fazer com que todos os congressos sejam feitos em cidades pacatas, vazias, tediosas ( as quais não cabe citar aqui, para ser politicamente correto) e daí todo mundo vai ser obrigado a ficar o dia todo no congresso, contribuindo para uma medicina melhor....

Essa mistura toda veio à minha mente quando estava indo hoje de táxi ao centro da cidade comprar bugigangas. Preso no trânsito, ouvindo Mastruz com leite, Reginaldo Rossi, Frank Aguiar, interrompidos pelo discurso da Dilma e por alguns gingles forrozentos do Serra. Uma revolta imensa. O que a Dilma ou o Serra farão para que tenhamos melhores e mais proveitosos congressos? Nada!

Mas assim caminham os psiquiatras. De congresso em congresso, vamos conhecendo o Brasil, encontrando velhos amigos e falando mal dos velhos inimigos. Bares, jantares, baladas, praias, piscinas e umas aulinhas e conferências uma hora ou outra para passar o tempo.... E lá vamos nós, em 2011 para o Rio de Janeiro e Buenos Aires!

Monday, October 25, 2010

JERICO-AQUÁRIO


“Nóis ganha pouco, mas nóis se diverte.”
(Dito popular)

É isso aí. Férias “forçadas” por força maior: um congresso em Fortaleza. Passadinha básica em Jericoacoara. A princípio, quando cheguei, achei que não havia valido o sacrifício. Muitas horas de estrada “normal”, mais um tempão de estrada “anormal”, repleta de dunas de areia com risco de atolamento. Hotel bonito, mas sem ar-condicionado, com a desculpa de ser “eco-resort”. Estou escrevendo e continuo suando em bicas. Ao lado do hotel, a beira-mar, o último dia de uma festival de música que podia bem ter terminado no dia anterior. Mas não foi um grande problema: estava tão cansado da viagem que adormeci feito a Bela e com o príncipe já à espera. Nem consegui ficar acordado para ouvir a Sandra de Sá cantando “Retratos e Canções”...

Domingo cedo, acordo disposto a passar o dia na piscina do hotel, apreciando o mar, vendo o mundo se acabar. Mas meus amigos “locais” disseram que seria uma pena ficarmos aqui sem conhecer o melhor de Jeri... E lá fomos nós num buggie alugado, dirigido por Didi Mocó. Fomos na Lagoa Azul. Bonitinha, mas ordinária. Água quentinha, transparente, mas tendo que desviar o tempo todo dos barcos que levam turistas de um lado a outro pelo lago.

Agora, chegando na tal Lagoa do Paraíso, minha Jeri ficou “massa”, como dizem. Uma lagoa enorme, que mais parecia mar, cheia de ondas chacoalhadas pelo vento. Sem sal, sem pedrinhas espetando o pé e com uma rede no meio da água pra espreguiçar molhado. Foi lá onde eu fiquei a maior parte do tempo. Meu amigo perguntou o que eu preferia, se a Lagoa do Paraíso ou Paris. Disse a ele que é o tipo de coisa que não se pergunta, porque, naquele exato momento, teria que abandonar Paris, caso eu respondesse. E o Arquétipo de Odete Roitman jamais me perdoaria. Até porque a Lagoa tinha um quê de Paris: lotada de franceses, dava até pra ouvi-los conversando. Até o garçom falava francês. Lógico que um francês cearense, “catre poassons pur partager antre tu le persones” e por aí vai. Cheguei até a visualizar, a gente saindo da Lagoa de buggie e, virando a primeira esquina, após o vigésimo terceiro jegue, lá estava, bela e resplandecente a Notre Dame.


E por falar em jegues, nunca vi tantos. Alíás, acho que nunca tinha visto nenhum antes. Vi vários deles pelo caminho, inclusive um morto, estirado ao sol. Vi um casal de jegues fazendo a dança do acasalamento, com a “jega” dando coices no “jego” pra escapar da ferroada. Eu acho que faria o mesmo se fosse ela, porque sempre ouvi dizer que os jegues tem grandes ferramentas. Mas acabei concluindo que a vida humana é igual à vida selvagem, só que com motores e ar condicionado: é o homem, o tempo todo fazendo de tudo pra levar a mulher pra cama e a mulher correndo o tempo todo pra não ir pra cama, mas acaba indo no final. Pra que perder tanto tempo. Isso é da natureza humana, mas também jeguiana.


No caminho, vi uma outra coisa muito curiosa. Várias vacas pastando, no meio das dunas de areia. Longe de toda água possível. Como pode? Será que acabam todas como aquele jegue? Morrendo de sede? Esturricadas ao sol? Concluí psicoticamente que essas são as vacas que dão a carne seca e o queijo coalho. Sempre pensei que a carne seca era preparada em grandes terrenos áridos, cheia de sal. Nada disso. Elas devem beber um pouquinho de água do mar vez ou outra e depois, quando elas se perdem no meio das dunas, começam a comer areia. Taí a origem da tão gostosa carne seca que recheia nossos escondidinhos.

Todos os animais vivem num sossego só aqui. Cachorros e gatos ficam dormindo embaixo das mesas nos restaurantes ou na areia da praia. Chamei vários deles pra brincar. Eles vêm, lentamente, dão três abanadas de rabo, concluem que não vão ganhar comida, saem andando, com a mesma lentidão ou se jogam, desfalecidos, a dois passos de distância. Nenhum deles pula na sua perna e nem sai latindo atrás pelas ruas, muito menos morder alguém.

Mesmo não sendo cearense, ouvi um ditado de um amigo, uma espécie de cantada mambembe dito a uma moça na mesa do jantar, que combinou com o espírito local: “A gente da certinho, igual dedo no nariz; não sobra nem um espacinho”. Vale dizer que ele disse isso “encenando” o ditado... Mas achei simpático e carinhoso, bem cearense.

Nunca gostei de caju. Sempre achei uma coisa sem graça, “peguenta”, esquisita. Sempre achei que Deus inventou o caju para chamar a atenção na árvore para o homem ir buscar as castanhas. Mas Jericoacoara reformulou minhas opiniões. Catei uns cajus caídos no chão. Senti o cheiro, deu uma mordida. Então foi só começar. Comi um atrás do outro, sem parar, sem culpa, sem arrependimento. Nem sobrou pra fazer umas caipirinhas. Não resisti. Nunca gostei do tal “Caju amigo”, mas agora fiquei amigo dos cajus. Duro é pensar que o caju que comemos e o suco que tomamos é feito de restos dos restos.

Saí para dar umas bizoiadas no comercio local, para comprar umas encomendas para uma amiga. Chegando à loja, quase caí para trás ao ouvir o preço dos badulaques. Nisso, minha amiga “local” perguntou à vendedora: “Isso é preço pra turista, né? Quanto que é o preço pro pessoal daqui de Fortaleza?” E a moça respondeu: “Bem, se o pagamento for à vista, tem vinte por cento de desconto”. Adorei a tática. Não costumo pechinchar, mas realmente comecei a gostar da brincadeira.

Duro é o caminho ida-e-volta. Acho que deveria haver helicóptero a preços populares. Mas tem suas vantagens. A dificuldade de acesso talvez seja a única forma de preservar a natureza de um lugar tão especial, nesse país tão pouco civilizado.

Wednesday, October 20, 2010

NOTHING BUT HOUND DOGS


"You ain't nothin' but a hound dog / Cryin' all the time /
You ain't nothin' but a hound dog / Cryin' all the time /
Well, you ain't never caught a rabbit
And you ain't no friend of mine"
(“Hound dog”, Elvis Presley)

Prefiro ser mordido pelo cachorro da vizinha do que por um humano qualquer que seja. Dizem que a mordedura humana é muito mais contaminada que a canina... Sim, isso é verdade. E num contexto mais amplo, os humanos ferem muito mais que os cães. Quando era criança, costumava levar o Toby, meu pastor alemão a um veterinário no Jardim da Saúde. Adorei quando soube que ele era gay e tinha um companheiro cabeleireiro que o ajudava nos procedimentos veterinários em suas horas de folga.

Mas o que mais me chamou a atenção lá e ficou sempre na minha cabeça foi uma frase num quadrinho emoldurado, pendurado na parede da clínica: "Quem nunca teve um cão, nunca soube verdadeiramente o que é ter um amigo". Sim, eu tenho amigos não-caninos de verdade, mas cães como o Toby, que ficava comigo horas deitado no quintal, ouvindo meus desabafos sem reclamar, sem criticar e sem dormir... Isso fez dele um companheiro de todas as horas, enquanto ele durou. Não, ele não morreu. Fui obrigado pela minha mãe a me desfazer dele. Ainda me lembro da imagem dele subindo no carro do feirante que o levou, enganado por um osso de frango. Aquela cara de perdido, de bobo, de quem não sabe o que está acontecendo...

E tenho ouvido várias histórias curiosas sobre cachorros e seus donos, principalmente envolvendo voracidade, gula e desastres decorrentes destas.

Uma de minhas amigas tem um basset hound. É um cachorro dócil, brincalhão e muito guloso. Pega com facilidade coisas pra comer de cima da mesa e uma dia desses comeu um pote de manteiga enquanto minha amiga atendia o telefone. Mas, nessas últimas semanas, andava esquisito. Tristonho, cansado, preguiçoso e bebendo muita, muita água. Perdeu o apetite, mijava por todos os cantos. Estava até com exames marcados para diabetes e outras doenças. Mas nada disso foi preciso. No final da semana passada "desovou" o motivo do piripaque: havia engolido uma calcinha. Eliminada, voltou totalmente ao normal, com sua alegria, sua disposição e seu apetite. Acho que ele não aprendeu a lição.

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Tenho um outra amiga que tem um cachorro muito fofinho, já aprontou várias peripécias "deglutivas" também, mas se especializou em espionagem escandalosa. É mestre em entregar segredos sexuais alheios. Outro dia uma amiga dela pediu para dormir na sua casa com seu novo namorado, mas ficou muito encabulada com as brincadeiras de cunho sexual da minha amiga, dando a entender que ainda não havia transado com o novo gato. Mas Sir Sherlock Dog não hesitou em desvendar o mistério e saiu andando com a camisinha usada pendurada na boca. Difícil foi arranjar coragem para tirar o pacotinho da boca dele.

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Outro dia soube de uma conhecida que estava num " boyfriends interchange period", ou melhor dizendo, namorando um cara e saindo com outro... Discretíssima, conseguiu levar a safadeza por algumas semanas e se esbaldou com o " Ricardão" enquanto o namorado estava viajando. E, depois da temporada, decidiu que não ia querer trocar a geladeira velha por um chupeta nova. Mas não contava com a astúcia de Sherlock: mal a geladeira, quer dizer, o namorado botou o pé em casa, lá começou ele a cagar as embalagens de camisinha... O resultado foi ter que ficar com a chupeta nova, porque a geladeira velha foi para a cucuia...

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Pablo era o basset da minha prima. Como quase todos os bassets, ele era muito calmo, bonachão e, obviamente, muito guloso. Até que um dia, ele parou de comer. Olhava com cara de nojo a comida, dava apenas uma cheiradinha e ia se deitar. Emagreceu. Não respondia aos chamados. Minha prima, como boa psicóloga e naturalista, achou que era saudades do seu filho que havia saído de casa para estudar fora. Mas, passados alguns dias, Pablo desmaiou. Desabou sua comprida plataforma costal sobre o tapete, virou os olhos. "Morreu", pensou todo mundo.

Levado ao veterinário, souberam que ainda vivia uns últimos suspiros e foi imediatamente levado ao centro cirúrgico, porque haviam detectado uma massa tumoral no raio-X. Desespero familiar com a segunda morte de Pablo. Sim, porque provavelmente teria que ser sacrificado com um tumor desse tamanho! Nem tumorzinho, nem tumorzão. Pablo havia engolido uma toalha de banho inteirinha. Ninguém viu, ninguém deu falta da toalha. E tão logo se recuperou da cirurgia, minha prima o levou a uma terapeuta de animais. Dona Freudinha Junguiana da Silva, expert nesses casos, disse que se tratava da projeção da ansiedade de meu primo, ao qual era tão apegado.

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Em minhas férias de 1999, ano em que terminei a faculdade de medicina, passei Natal e Ano Novo em Recife. Nada de luxo, passeio em módulo econômico: viajei de tarifas promocionais de aeroviário e me hospedei na casa da amiga de uma amiga. Aquele lugar era um abandono só: ela, seu marido e um amigo-hóspede eterno ( mas isso é assunto para uma próxima blogagem) se entupiam full-time de marijuana... Sem trabalho, sem água, sem comida. O day-by-day menu era uma só coisa: cuscuz, cuscuz e cuscuz. Até o gigante dog alemão deles vivia disso, quando sobrava cuscuz. Quando não sobrava, a tal amiga esperava o coco cair para alimentar o cachorro. A cena era grotesca: enquanto comíamos, o dogão ficava na janela, choramingando e babando de fome. Sim, eu era duríssimo, mas não, não pude deixar de comprar um saco de ração para ele e ir dando umas canecadas de ração enquanto os dias passavam.

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Minha primeira cachorrinha era uma vira-latas branquinha chamada Frica. Meu avô escolheu esse nome porque ela chegou numa noite de inverno e tremia muito de frio. E o nome não poderia ser melhor: Frica era muito alegre, mas muito medrosa e tremia de tudo e de todos. Mas como todos os meus cachorros, Frica teve que partir. Passado algum tempo, minha família se mudou para Santo André e minha mãe achou melhor arranjar um outra cachorra. Agora uma dobermann, para proteger a casa, mas com o mesmo nome: Frica.

Essa Frica era diametralmente diferente da outra: era preta, robusta e não tinha medo de nada. Comia tudo que via pela frente, destruía brinquedos, panelas, chinelos. O mais curioso de seus ataques ocorreu em segredo e só foi revelado na porta de saída. Frica se contorcia, arrastava o rabo pelo chão, se impacientava. Finalmente conseguiu expulsar a primeira "remessa" que saiu pendurada numa corda de varal plástico azul. Prevendo o estrago que faria com aquilo, tratei de calçar luvas e acabar com aquela agonia. Frica tentou me morder, não parava um minuto para que eu pudesse ajudá-la e, num descuido, escapou das minhas mãos, saindo correndo pelo quintal, esticando, de uma ponta a outra, o tal do varal azul.

Fricas, Dugos, Tobys, Pablos, Jaimes, Sherlocks e tantos outros cães que passaram pela minha vida, deixando suas histórias que guardo na memória. Como meus amigos humanos, que passam, que vêm e que vão e deixam saudades. Diferentes raças, cores, tamanhos, jeitos. Somos como os cachorros vira-latas em busca de lares, de carinho, de atenção e de cuidados. Mais ou menos independentes, somos na verdade interdependentes e precisamos, como condição de sobrevivência, dar e receber amor para nos abastecermos de vida.

Onde estarão eles agora? Esses amigos silenciosos, companheiros, fiéis. Diferente dos meus amigos humanos, a maioria deles já deve ter partido para o céu dos cachorros, porque algumas dessas histórias têm quase a minha idade e o tempo deles se esvai muito mais veloz que o nosso.

Como muitos amigos humanos, não quis que nenhum deles saísse da minha vida; a vida os tirou de mim, pelas mãos de outrem, sem que eu quisesse. Mas, diferentemente dos cachorros, podem voltar a qualquer hora, porque ainda estão vivos na carne e, igualzinho aos cachorros, bem vivos em meu coração.

Saturday, October 16, 2010

"TÁ VIVO, TÁ VIVO": NOTÍCIAS DA DONA MORTE


Hoje estava conversando com uma amiga sobre a Morte. Eu penso muito sobre a morte, não porque a deseje hoje em dia, nem porque tenha medo dela. Sei que ela vai chegar um dia, mas o que eu tenho realmente medo é do que a antecederá. Será que eu estarei lúcido? Será que morrerei sozinho? Será que sofrerei muito até ela chegar? Morro de medo de ficar “gagá”, dependendo de outros, decrépito, usando fraldas. Já me disseram que isso não deve ser problema, porque se eu ficar “gagá”, eu nem me lembrarei disso. Será mesmo? Será que meu espírito vivo não terá consciência e vergonha daquele estado deplorável? Uma de muitas perguntas sem resposta sobre a mortuária morte.

Tem coisas que eu realmente desejo que não aconteçam, e espero que Deus me escute: que minha morte seja súbita, que eu não esteja sozinho, que não sinta dores longas; eu realmente prefiro morrer num acidente de avião do que ser atropelado por um fusca verde e que, de preferência, se não for de acidente aéreo, que seja no meu futuro apartamento em Paris, bem em Saint-Germain-des-Près. Se sobrar corpo, quero que bote fogo e que joguem as cinzas em qualquer lugar; pode ser samambaia, no próprio Sena, na privada. Cinza é cinza, não serve pra nada.

Morto o corpo, que meu espírito vá para o céu dos macumbeiros, com bastante atabaque e danças. E tomara que tenha vinho de palma, acarajé e Malrboro Vermelho. Por favor, Deus, me escuta: não me manda pro “Nosso Lar”! Se o céu dos macumbeiros não existir, pare a nuvem no meio do caminho e deixa eu descer na primeira encruzilhada. Quero ser servente de Orixá.

Mas, além da minha morte, falar da Morte me trouxe lembrança de mortes, pré-mortes e pós-mortes curiosas. Sempre se ouvem histórias de mortos que ressuscitam ou que são descobertos agonizando no caixão no momento da exumação. Dizem que isso aconteceu com o cantor Antônio Marcos e com outros que não me lembro agora. É a tal da catalepsia, um estado de profundo enrijecimento dos membros e ausência temporária de sinais vitais, que leva a crer que a pessoa está morta e na verdade não está. Verdade ou mentira, acho que a fantasia da não-morte está presente no imaginário de quase todas as culturas. Daí que surgiu o velório, como uma forma de atestar, passadas várias horas ou dias, que o morto está, de fato, morto. Daí deriva também a indústria das campainhas de cemitério. Olha que coisa: você pode ser enterrado com uma campainha eletrônica na mão, para apertar e ser salvo no caso de ter sido enterrado vivo. Dizem que tem algumas sistemas que acionam até um sistema de ventilação, para, caso não se morra de susto, não se asfixie.

A avó de uma amiga, matriarca de uma família do interior de São Paulo conhecia uma oração dedicada a uma Santa que, segundo minha amiga, quem aprendia a oração de cor era capaz de saber o dia da própria morte. E ela sabia e avisava a todos que queria ser velada com a camisola que usou em sua lua-de-mel, guardada no baú de seu enxoval.

Cento e seis anos se passaram, e nada na Dona Morte chegar. Enfisema pulmonar, insuficiência cardíaca, muita tosse e dispnéia. A velha não saía da cama por nada e dormia sentada para conseguir respirar. Em outubro do tal ano, a velha tava morre não morre. Semi-consciente, desfalecida, a família achou por bem convocar a família espalhada pelo Estado para o provável enterro.

Gente vinda de todos os lados, filhos, netos, bisnetos e até tataranetos. Rodeada de um montão de gente, aguardando a “passagem”, a velha dá um suspiro profundo, daqueles do tipo “agora vai”, abre, com esforço, um único olho e pergunta quase cochichando para a filha:

“Ô, fia, o que esse povo todo faz aqui?”
“Vieram visitar a senhora, mãe.”
“Pois pode mandar todo mundo simbora que ainda não chegou a hora. Eu vou avisar quando chegar; antes disso não quero ninguém rondando minha cama feito mosca.”

E chegou o final de ano. Passou o Natal e, no dia trinta de dezembro, a velha chamou a filha :

“Agora pode chamar o povo, que eu estou indo embora. Porque meu véio ta chamando.”

E veio toda a parentada. A velha foi banhada com ajuda das filhas, perfumou-se de água de cheiro, vestiu a camisola, que estava larga de tão miúda que estava. Beijou e foi beijada pelos parentes todos.

“Agora já chega. Meu véio já eá impaciente”. Espalmou as mãos sobre o peito, sentadinha e fechou os olhos, como se embarcasse numa cápsula. Deu enfim aquele último suspiro e sorriu. Devia ser o velho tomando suas mãos para a viagem.

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A saga da velha não parou por aí. A morte realmente é só o começo. Devido ao seu crítico estado de saúde, há anos dormia sentada e sentada morreu. Na hora de encaixota-la, não havia meios de esticar aquele corpinho franzino. Parecia uma cadeira feita de galho seco, dessas coisas modernistas. A única solução foi amarrar a velha no caixão. Com muito esforço conseguiram; estavam com medo de partir a velha no meio. Finalmente esticada com cordas de laçar boi, ouviram um “creck” quando conseguiram atingir os noventa graus.

Já no velório, ninguém notava a diferença. Lá estava ela, sorridente, bem como a parentada, após anos de espera e diversas indas e vindas aos “pré-velórios”.

Lá pelas quatro da manhã, a algazarra corria solta. Bate-papo, risadinhas, piadas, lembranças. E, de repente, no meio da confusão, o corpo da velha salta pra frente, como num arremesso, deixando ela sentada no caixão. A parentada sai toda correndo da sala, gritando “está viva, está viva”. Alguns já pensaram que esse não seria o último e ficaram imaginando quantas vezes mais teriam que vir nesses ensaios mortuários. Não era nada disso. As cordas haviam se soltado. Provavelmente a velha estava desconfortável amarrada daquele jeito. “Isso não é jeito de alguém ir pro céu, amarrada, como se fosse um “coisa-ruim”, disse uma das tias. Decidiram velar assim mesmo, sentada, sorridente. O enterro atrasou um pouco, porque demorou pra conseguirem um marceneiro que fizesse um caixão quadrado, que coubesse o corpo daquele jeitinho, sentada, como se estivesse na mesa da cozinha. Feito isso, a velha descansou do jeito que descansava há longos anos.

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Sinhô Moreno, parente de um amigo meu, morreu aquela morte que eu sonho: sem doenças, em idade de anos bem vividos, lúcido. Vestia-se para ir à missa na pequena cidade interiorana onde morava, perto de São José do Rio Preto. Passou seu perfume. Sentiu uma dor forte no peito, gritou pela ajuda da esposa “Véia!” e caiu mortinho dos braços da Dona Maricota. E lá se deu toda a parafernália de velório e no meio da noite, Tia Cremilda, cunhada de Nhô Moreno, começa a gritar, escandalosamente: “Tá vivo! Tá vivo!” e desmaia no meio do salão. A essa altura, ela desmaiada e o salão vazio, porque todo mundo tinha corrido. Nhô Zeca, irmão de Sinhô Moreno foi o primeiro a se aventurar na via ressuscitandis. Acudiu a desmaiada, olhou para o caixão e tudo estava imóvel.

Tia Cremilda disse que viu o defunto mexer o dedo do meio. Todo mundo achou que era fantasia, e uma fantasia erótica, porque haviam sérias desconfianças de uma paixão recolhida da velha pelo falecido.

Volta o silêncio a reinar. Nhô Bentinho, primo e amigo fiel do defunto, chega ao velório para dar seu adeus. E, ao colocar suas mãos sobre a mão de Nhô Moreno, sente o seu dedo mexer. Sem desmaiar, começa a gritar: “Tá vivo, sô! É um milagre! Nhô Moreno tá vivo!” E lá se foi Nhô Zeca averiguar os fatos. De fato Nhô Moreno mexia o dedo do meio, como se apontasse para algum lugar. Chamaram Doutor Cassiano, que lhe tomou os pulsos, os batimentos, iluminou seus olhos acinzentados. “Está morto”, assentiu. Mas tomou um baita susto quando viu o dedão duro mexer. Tomou a mão do defunto e achou a causa do mexe-mexe. Era um besouro preso embaixo da mão do falecido, que, tentando escapar de ser enterrado junto, forçava a saída empurrando o dedo para cima.

Sim, numa terra cheia de besouros, é sempre bom averiguar se eles não se enfiaram em algum buraco indesejado, causando várias falsas impressões...


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Emerenciano era um homem querido pela família e pelos amigos. Morreu dessas mortes que não quero pra mim: atropelado no meio da rua por uma bicicleta cor-de-laranja velha e enferrujada, dirigida por um bóia-fria. Ao menos foi rápida: nem bem levou o tranco, tropeçou em si mesmo, bateu a cabeça numa pedra pontuda no meio da rua de chão batido e apagou. Um filete de sangue escorreu pela têmpora, do furinho deixado pela ponta da pedra.

Ninguém queria crer em sua morte. Quarenta e cinco anos, rapaz jovial, esportista, sem vícios. Casado há quase quinze anos com Laurinha, sem filhos, viviam numa eterna lua-de-mel, como diziam.

O velório foi uma tristeza só. Parente após parente, amigo após amigo. Todos se aproximavam do corpo para se despedirem, desconsolados. Apenas Laurinha não desgrudava um minuto do caixão. Chorava, conversava com Deus, reclamava da injustiça e do erro cometido; falava com Emerenciano, fazia juras de amor eterno e prometia resguardo e fidelidade. “Como eu queria, por Deus, que isso não fosse verdade, marido!”, dizia com os olhos copiosos de lágrimas.

E, de repente, um solavanco no caixão. O corpo de Emerenciano estremilicou. “Tá vivo, ele tá vivo! Milagre de Deus!”. Todo mundo veio ver. Laurinha sacudia o marido, esperando que ele desse novo sinal de vida. “Deve ser impressão, minha filha, vai descansar um pouco”, disse o pai da viúva. E depois foi a vez da mãe de Emerenciano experimentar o sacolejo. Nova onda de susto. E no terceiro sacolejo, perceberam que, embaixo do caixão, se ouvia um toc-toc-toc. “Que é isso, assombração?”. Não era nada disso. O irmão de Emerenciano levantou a toalha na mesa fúnebre e encontrou a tal assombração. Era Simbá, o vira-latas da venda do Pedro Açougueiro, coçando sarnas e pulgas embaixo do caixão. E, no que se coçava, batia sua coxa esguia na perna da mesa, sacudindo o morto.


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Ricardo morreu como o Nicholas Cage em “Despedida em Las Vegas”: bebendo. Tecnicamente foi um infarto, mas infartou bêbado. Perdeu dinheiro, família, negócios e sua única companheira era a “marvada pinga” na solidão da kitchnete onde morava.

E chegaram juntas, Marta, sua ex-mulher e Leila, prima dela, amigas inseparáveis. Correram para a sala do velório, deram de cara com o caixão.

“Leila, como ele está horrível. Inchado, descuidado!”
“É verdade, ele era tão bonito, né?”
“Ele se acabou com o álcool, né?”
“Mas pelo menos ele morreu feliz...”
“E esse cabelo, como ele ficou careca rápido... Encontrei ele no mês passado e ele estava tão cabeludo...”
“Menina, e esse terno horroroso, quem escolheu?”
“Vai ver que foi um amigo bêbado dele, porque nem terno ele tinha.”
“Essa gravata horrorosa, amarela, com abelhinhas? Cruzes!”
“Menina, e essas flores, essas velas, tudo tão cafona!”

E enquanto elas convulsionavam de tanto falar mal dos detalhes do velório, um monte de gente foi se aproximando, olhando feio para elas.

“Amiga, o que essa gente tá olhando feio? Você conhece?”
“Não faço idéia... Será que ele tinha outra família?”
“Amiiiiiiga... olha pra baixo e vamos sair de fininho....”
“Mas por quê? Não posso criticar o velório do meu ex....”
“Defunto errado, amiga!”

E elas saíram, de forma muito elegante, ao perceberem que
entraram na sala errada. Correram para trás do velório, rindo e chorando ao mesmo tempo. Leila mijou nas calças de tanto rir. Riram por mais de uma hora, sem parar. Foram ao banheiro, retocaram a maquiagem, mas, ao entrar na sala, desataram a rir novamente. Deixaram o velório pra trás e decidiram terminar de gargalhar no café do Shopping Iguatemi.

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Sim, a morte não é só dor e tristeza. Ela pode ser transformação, passagem, reencontro e até piada. Dizem que contar piadas em velórios é uma forma de defesa maníaca contra a depressão. Pode ser. Mas também pode ser que a morte possa ser encarada como algo mais natural, menos trágico, uma vez que é inevitável e, a menos que se saiba a oração da Nossa Senhora de Nem Quero Saber de Quê, é imprevisível.

(Na foto: Nossa Senhora Morta sendo velada pela Confraria da Nossa Senhora da Boa Morte, na Bahia.)

Thursday, October 14, 2010

SEM AMOR TAMBÉM SE VIVE?



Sem amor se vive sim, mas fica difícil suportar. Não dá pra acreditar em choro sem lágrima, não dá pra gostar de manjar sem calda, nem acarajé sem dendê. Já imaginou acarajé “light”, cozido na água? Acarajé poché. Já imaginou quindim sem ovo? Nem missa sem padre, nem reza sem terço. Nem descanso sem rede. Nem sombra sem coqueiro. Banho sem água, roupa nova sem água de cheiro. É tudo um bando de coisas tão simples, mas que viram nada quando falta uma virgulinha dessa simplicidade. Porque o Amor também não é uma coisa só: o Amor é uma receita, de pelo menos duas coisas. Até cozido precisa no mínimo de água e farinha. Pra escovar os dentes é preciso de escova e água ou pasta e escova, ou água e pasta ou pasta e dedo. Pra escrever é preciso lápis e papel ou qualquer outra coisa onde se escreva. Pra dormir tem que ter corpo e chão, corpo e colchão, corpo e travesseiro. Vê? Nada nessa vida começa se não for de dois. O número um só foi sozinho até o dois chegar. E com amor, é a mesma coisa. Tem que ter no mínimo dois. Tem gente que acredita em amor próprio como sendo uma coisa de um. Eu não. Pra mim, amor próprio é eu amando eu mesmo, então já são dois. Então fico imaginando como seria a vida sem essas coisas todas; é a mesmíssima coisa que vida sem amor. Muito simples e muito complicado. Dizem que um chinês perguntou qual seria o som de bater palmas com apenas uma das mãos. Não tem som, não tem palma, não tem nada. É a tal da virgulinha que falta e faz toda a diferença.

Outra coisa se torna a vida quando o amor chega: tem cor, tem cheiro, tem brilho, tem sorriso, tem esperança. Tem orgulho, tem peito estufado, tem bunda empinada. Tem um movimento natural das coisas que são naturais na vida da gente. Tem nuvens escuras vez ou outra; tem contratempos, tem dissabores. Mas saber que tem farinha pro angu, água de cheiro pra botar sobre a roupa nova, vaso pra colocar as flores, calda para o manjar e um amor esperando no final do dia faz toda a vida ficar diferente. A gente fica inteira. Tem um monte de coisas que podem aparecer para tapar os buracos que o amor deixa. Tem gente que arruma filho. Tem gente que compra cachorro. Tem quem compre sapatos e blusas. Tem quem guarde dinheiro ou colecione carros de luxo. Mas nada, nadinha consegue ocupar o lugar do amor na vida da gente. O amor é como a lenha na lareira, que aquece esse buraquinho; nascemos com ele, já de fábrica para ser preenchido de amor e ternura. A lareira, como o amor, pode ser preenchida por várias coisas. Flores secas, vasos bonitos, pedras, estatuetas bonitinhas. Tudo isso pode ocupar o lugar que a lenha ocuparia, mas nada pode fazer o que a lenha faz.

Tenho pensado muito no amor, nas confusões de uma vida sem amor e nas reviravoltas da vida em prol do amor. Amor é movimento; também pode ser descanso, aconchego. Mas não é uma coisa em si. É uma fabricação, uma manufatura ou uma explosão química. Nessa semana que ainda emana os raios benéficos da Mãe Oxum, Deusa do Amor, a maior riqueza, o maior ouro que existe, que todo mundo possa receber as suas bênçãos, seus fluidos, suas irradiações positivas. Pra quem tem amor, que ele fique, se renove, se transforme; pra quem espera ele chegar, que ele chegue logo, invada a vida, os poros, tudo. E pra quem não acredita mais, pra quem amargou de esperar ou que fechou as porteiras do coração pela dor ou pela decepção, que ele chegue, bata na porta, mostre quem é e pra que veio.

Tuesday, October 12, 2010

RUÍNAS E POEIRAS BAIANAS


Não é novidade pra ninguém o quanto amo Salvador. Facebook, Twitter, blogs, livro, poesias, prosas, contando, enaltecendo, louvando, fazendo declarações de amor e fidelidade à Bahia e, sobretudo a Salvador. Esse amor é jovem nessa vida - tem quase oito anos - mas acredito que é carregado como as sementes pelo vento, ao longo de muitas e muitas vidas. Sou filho de coração, alma e espírito da Bahia. Até a Bahia dos espíritos, a Aruanda baiana me reconhece e me acalanta como seu filho: sou filho espiritual de um baiano muito porreta que me socorre nas horas de aflição.

Em tempos de informações em tempo real nas redes sociais cibernéticas, também não é novidade que passei meu feriado em Salvador e, como sempre, foi tudo "massa". Hotel lindo, muita água de côco, sol espetacular, praias, piscinas, descanso, relaxamento, rezas. Tudo, tudo o que eu pedi a Deus, consagrado pela felicidade de estar, pela primeira vez, em Salvador com meu grande amor. Sempre digo que a Bahia me deu sorte, porque logo após essa enxurrada de energia que eu encontrei um coração-morada para depositar todo meu amor.

Mas a Bahia não foi só risos e alegrias dessa vez. Passando por vários cantos da cidade, fiquei reparando em quanta sujeira, quanta pobreza e deterioração por todos os lados. Gente fumando crack, dormindo nas ruas, perambulando pelas madrugadas em busca de mais droga ou dinheiro para comprá-la. Os chamados zumbis ou sacis do crack de Salvador se encontram por toda parte. Fiz minha primeira visita ao Convento do Carmo. Um jantar excepcional, mas não gostei da sobremesa indigesta: passar pelos caminhos deteriorados, mal cuidados do Pelourinho. Caminhos seculares, casas centenárias, tudo caindo aos pedaços. Na praia, nos alertam para tomar cuidado com os pertences porque " o crack está comendo solto". Itapoã agora é cracolândia.

Hoje foi meu último dia na cidade que tanto amo. Ao sair do hotel, cortei minha mão na porta do banheiro. Sangrando, minha alma foi dando adeus à Bahia. Quis visitar o Bonfim, a Igreja de São Francisco, a Casinha de Yemanjá, tomar sorvete na Sorveteria da Ribeira. Me enveredei pelos caminhos que levavam ao Bonfim e fiquei impressionado com as construções derrubadas, sem conservação. Isso é que se pode chamar de tombamento. Vi várias igrejas lindas, corroídas; vi uma igreja oca, sustentada por vigas podres. Chegando ao Bonfim, os olhares ao horror adormecem e o coração arrefece. Dia da Oxum e das Crianças, sou tomado de amor e compaixão com a bênção do padre. Saindo da Igreja, tomo para junto do meu corpo as gotículas de água benta e vejo que minha mão volta a sangrar. Chagas? Estigmas? Não tenho essa santidade, nem essa pureza. Mas o sangue escorrendo fala pra mim que existe vida em tudo isso e que uma parte da minha alma viva mora em Salvador.

Na casinha de Yemanjá, no Rio Vermelho, ela se pōe a falar comigo em silêncio. Fala com a voz do coração, que é muda aos ouvidos do corpo e diz que tudo ficará bem, em minha vida e em Salvador. Do mesmo jeito que ocorre quando faxinamos nossas casas ou como quando fazemos terapia, é preciso deixar a sujeira sair para ser vista e então limpa. Desço até a praia, concentrado, disposto a finalizar as preces no grande reino da Rainha do Mar. Preguiçoso, desço à praia calçando sapatos, sem dar ouvidos aos sussurros da Mãe Sereia. Ela, que não é mãe de se vingar de seus filhos, inunda de água meus pés para dizer que na água se entra é descalço, porque é pelos pés e não pelas mãos os pela cabeça, que ela nos purifica.

Enfim, no meio de tantas ruínas, Salvador ainda tem um coração pulsante. Cheia de vida, de histórias, de misturas, lendas e crenças. É um espelho da vida, da alma: pode-se estar sujo, alquebrado, mas somos o que somos; somos nossa essência.

Sunday, October 03, 2010

PSICÓLOGAS DE PLANTÃO


Não, eu não quero falar mal das psicólogas; daquelas que tiraram seus diplomas, que pagam direitinho suas anuidades no Conselho Regional de Psicologia. Quero falar da necessidade que as pessoas têm de “TER” uma psicóloga e da imperiosidade que outras possuem de “SER” psicólogas, mesmo sem diploma. Numa época em que “bipolar” virou xingamento, que tristeza virou depressão e Prozac virou alimento, é de se supor que bate-papo virou terapia.

As pessoas não se reúnem mais para desabafar, e sim para fazer catarse. Ninguém dá mais conselho; somos impelidos a interpretar as falas... E “fala”... Isso é fala de psicólogo! Nesses tempos psicologizados, é quase imprescindível que as pessoas tenham seus “psis-portáteis”. Até porque sai muito mais barato e é muito mais prático do que fazer análise, além da conveniência de momentos. Por que eu deveria ir a um consultório de um terapeuta, pagar honorários, cumprir horários, se eu posso ter pseudo-terapia-aqui-agora com quem eu bem entender?

Faz dias que tenho observado as “psis-portáteis” e tentado criar um perfil, um “horóscopo psicológico”, dessas fiéis conselheiras de plantão. Claro, são resultados preliminares, mas acho que já dá pra ter uma noção da rede de serviços com a qual podemos contar e dos perigos que podemos correr.... Não que tomar uma “interpretada” amadora não possa salvar vidas; dependendo da linha que ela segue, dependendo do livro que ela acabou de ler, podemos ouvir coisas que possam nos movimentar para mudanças... Até porque nunca se sabe se uma Pomba-gira, o Caboclo 7 Flechas ou o Bezerra de Menezes estão por perto para acrescentar uma “energia extra” nos conselhos das amadas Psis...

A PSI-TACÍDEA.

Essa é a mais comum das Psis. É aquela amiga que sabe de tudo, que já fez vários tipos de terapias, em linhas variadas, por tempos reduzidos e agora lê Augusto Cury, mas não conta pra ninguém. Fala pelos cotovelos, ela se antepõe naturalmente nas conversas e expressa sua erudição psicológica, “dichavando” seus conceitos e interpretações que vão de Freud a Hitler num flash... Ninguém pede sua opinião, mas ela está sempre pronta a oferecer e vez ou outra faz citações de grandes personalidades do mundo psicológico e filosófico.


A PSI-ALCOÓLICA

Esse tipo de Psi é facilmente encontrada nos bares da cidade, principalmente em fins de noite, nos quais ela não se atracou com ninguém. Cigarro numa mão e destilado na outra, baforeja álcool e interpretações prolixas sobre a vida de quem estiver e até de quem não estiver. Muitas delas nunca fizeram terapia e se utilizam de conceitos-jargão mais que batidos, com pitadas de Zíbia Gasparetto e Dalai Lama. Se passaram dos trinta e cinco, pode ser que se lembrem de alguns conceitos de Marta Suplicy em tempos de TV Mulher; se não forem muito suburbanas, pode ser que assistam Saia Justa na GNT e consigam recuperar duas ou três frases incompletas das entrevistas do Jorge Forbes ou dos resquícios divanescos de Mônica Waldvogel. Essa é a típica psi “Pearls and Pigs” (aka “pérolas aos porcos”), porque ninguém vai ouvir seus conselhos a uma hora dessas e, caso ouça, esquecerá no dia seguinte, respeitando os princípios mais puros da Redução de Danos.

A PSIVA-AGRESSIVA

Cuidado com ela, isso é um perigo! Essa é a mais enigmática e perigosa das Psis, e seria chamada de fofoqueira e venenosa em outros tempos. Geralmente inteligente e maldosa, faz terapia DE FATO porque precisa... precisa aumentar o seu rol de conhecimentos psicológicos para destilar veneno e atirar farpas. Como já tem anos de estrada psicológica, possui um pseudo-domínio mais pleno dos conceitos e consegue proferir vastos exemplos que podem influenciar a tomada de decisões de vários incautos. Geralmente se utiliza de técnicas “projetivas”, colocando opiniões suas nas bocas e atitudes de outros e de técnicas “auto-referentes”, citando exemplos de suas próprias sessões de terapia para induzir a incauta ao erro de se entregar.


A PSI-COLÉRICA

Essa é a mais divertida das Psis. Impulsiva, incontida, indignada, fala o que pensa e o que não pensa, como se fosse decidir as coisas no último minuto. Essa é mais modesta: não fez terapia, não faz citações, não lê livros de auto-ajuda. Ela é apenas ela, com suas opiniões fortes, seus conceitos contundentes. Fica vermelha quando discorda, fica efusiva quando concorda. Não é do mal, mas pode provocar o mal a quem for persuadido a seguir seus conselhos.

A PSI-CODÉLICA

Esteve em Woodstock e parece que não saiu de lá. Usou muito LSD, chá de cogumelo e hoje frequenta as sessões de Santo Daime, ou já está tão frontalizada que nem precisa mais se drogar. Mas, do mesmo jeito que se instalavam bolinhas de pingue-pongue nos pulmões furados dos tuberculosos, parece que ela tem um bolinho de tóxicos dentro da sua cabeça ou vários deles. Prolixa ao extremo, ainda preocupada com a paz mundial e continua votando no PT. Tenta ajudar, mas se perde nos assuntos e nunca lembra da última célebre frase que proferiu.

A PSI-PSI

Diferente das demais, essa é psicóloga formada e, não só não se esquece disso, como faz questão de lembrar o tempo todo o que faz da vida. É um tipo parecido com a psi-tacídea, mas com diploma. Entra invariavelmente nos assuntos da vida dos outros e interpreta. No bar, no restaurante, no metrô, em casa de amigos, ela está sempre pronta a... atrapalhar, ensinando melhores modos de vida, construindo alternativas e, principalmente interpretando “forte”.

A PSI-PSIU

É realmente a melhor de todas as Psis. Pode ter feito algum tempo de terapia, mas não é pré-requisito. Não lê auto-ajuda, não fala de religiões e nem faz citações. Ela é apenas alguém que sabe ouvir e tem muita paciência. É capaz de suportar horas de loucuras enfurecidas e desvarios das amigas "psicadas". E pode, de vez em quando, intervir como uma foice a cortar comportamentos e pensamentos equivocados. É o tipo de Psi que todo mundo precisa e está em extinção; do tipo que antigamente era chamada de "uma ótima amiga e conselheira".

Enfim, deixo a vocês o meu Zodíaco Panteônico de Psis. Como tudo é mítico, elas devem ter algum mito embutido em seus seres, mas ainda não é o momento de revela-los. É chegado apenas o tempo de desvendar o Tabu da Psicologização, no qual cada vez mais e mais nos vemos submersos. Interpretando, sendo interpretados, analisando. Onde estão as conversas francas e despretensiosas dos amigos fiéis? Será que ainda sobrará espaço para as conversas divertidas e que não são carregadas de conceitos poluentes que forjam a compreensão do mundo?

Não sei se quero, tampouco se podemos compreender tudo. Mas quero poder dar risada de quem leva a vida interpretando cada passo de si mesmo e dos outros e não chega a lugar algum.

A LANÇADORA DE LIQUIDIFICADORES


Comecei a escrever muito cedo, por volta dos meus dez anos. Lembro de minha primeira poesia, escrita na quarta série, que falava sobre as eleições diretas. Começava assim: “Diretas já! Chega de blá-blá-blá”. Não me lembro do resto e tampouco a mantive guardada. É uma pena. Passado algum tempo, comecei a escrever poesias abstratas, assimétricas, todas simbolizando as angústias, as aflições, o descontentamento. Até hoje, quando releio, me entristeço profundamente, não apenas por lembrar dos momentos difíceis, mas porque a densidade delas contamina.

Por algum tempo na minha adolescência, escrevi pequenos contos. Escrevia para minha prima, para minhas amigas, histórias de amor que falavam dos seus “paquerinhas”, sempre com final feliz. Era uma coqueluche. Realizava os sonhos de minhas amigas através das minhas histórias. Mas houve uma vez que a história não terminou tão bem assim. Uma de minhas amigas pediu que escrevesse uma história para ela. Não sei dizer se foi uma “espécie” de premonição sobre os dias de infelicidade que estavam por vir ou se estava tomado da necessidade de extravasar a minha própria dor. O fato é que escrevi uma história na qual ela, tendo obtido esplendoroso sucesso em sua carreira de modelo, terminava sozinha em Paris, após a morte do seu amado, recebendo o telefonema de seu filho mais velho, felicitando-a pelo aniversário.

Eu estava lendo a história na mesa do lanche de sua casa, acompanhada de várias pessoas, inclusive ela. Á medida que foram ouvindo a história, todos ficaram muito angustiados e minha amiga, no auge da sua aflição, aos prantos, atirou o copo do liquidificador na minha cabeça, banhando-me de Toddy. Não bastasse, ela se atirou para cima de mim, tentando me enforcar, sendo segurada por todos a sua volta. Tive que fugir para o banheiro e ficar trancado até que ela se acalmasse. Ela rasgou a história em mil pedaços e depois demos muitas risadas sobre a reação dela.

Lembrei-me dessa história hoje porque estava lendo um livro que me fez chorar. Então parei para pensar em como simples palavras, combinadas de uma forma especial, num momento propício, têm o poder de desencadear emoções, sentimentos, reflexões. As palavras têm poder. A escrita tem poder.

E qual é o tabu da palavra? Acho que é o tabu do medo. Os orientais dizem que devemos tomar cuidado com o que dizemos porque quando as palavras saem da boca, elas adquirem poderes mágicos, ectoplasma, forma, cor, ou sei lá o quê, fazendo com que os espíritos as capturem para realiza-las. Como não podemos saber se os espíritos são anjos ou demônios, não fazemos idéia do que pode acontecer. Será que não sabemos mesmo ou simplesmente não estamos preparados para essa transformação?

Só sei que minha amiga me deu um presente. Aprendi, desde muito cedo, a não falar tudo o que penso. E durante a vida, venho aprendendo e desaprendendo essa máxima.

SIM, SOMOS HERÓIS…


Noite de quinta-feira, 22 de fevereiro de 2006. Um noite emocionante. Posso falar das emoções que senti, uma a uma; posso falar de todas elas como se fossem uma só; posso falar da emoção que venho sentindo desde o anúncio de que chegaria esse dia: o dia da sua vitória.

Sim, acho que ela é um pouco minha, porque como você mesmo diz, de alguma forma o meu esforço, a minha luta, serviram de inspiração para você fazer o seu caminho. Mas seria injusto, leviano, egoísta achar que isso tudo foi só por minha causa.

A vitória é sua, porque você construiu o caminho, driblou os obstáculos, tirou as pedras, criou e curou seus próprios calos. E hoje, quando vi você tão grande, tão luminosa, tão mulher, no dia da sua vitória, quase esqueci daquela menininha que vi nascer, que escolhi o nome, que fiz dormir…

E, de repente, nem precisei lembrar de uma música, pois eles trouxeram para nós, me fazendo pensar nesse momento único, porque marca uma real vitória :

“There's a hero 

If you look inside your heart
You don't have to be afraid
Of what you are
There's an answer
If you reach into your soul
And the sorrow that you know 

Will melt away 

And then a hero comes along
With the strength to carry on
And you cast your fears aside
And you know you can survive
So when you feel like hope is gone 

Look inside you and be strong 

And you'll finally see the truth 

That a hero lies in you 


It's a long road 

When you face the world alone 

No one reaches out a hand 

For you to hold 

You can find love 

If you search within yourself 

And the emptiness you felt 

Will disappear 


Lord knows 

Dreams are hard to follow 

But don't let anyone 

Tear them away, hey yeah 

Hold on 

There will be tomorrow 

In time 
You'll find the way”
(Hero,Mariah Carey) 



Foi então que pensei: “Sim, somos mesmo heróis, vitoriosos, batalhadores e devemos lembrar sempre”. Porque somos tudo isso de fato e merecemos aquilo que o bom destino nos reserva. E então alguém falou de gratidão àqueles que nos ajudaram, que não nos deixaram esmorecer. E cantaram a música que eu costumava cantar para fazer você dormir: “Como é grande o meu amor por você”. Podem achar brega, démodé, ultrapassado, cafona. Mas era eu, um menino de sete anos fazendo a sua irmãzinha dormir com todo o amor que eu sentia por ela.. (por você…).